Transmissão da teoria psicanalítica no curso Conflito e Sintoma[1]
por Ana Maria Sigal[2]
Vamos falar de transmissão.
Quero ter o prazer de apresentar para vocês algumas questões que caracterizam o curso de Conflito e Sintoma e me parecem importantes para marcar uma posição em relação à transmissão de conceitos psicanalíticos. Esta comunicação é um resumo da aula inaugural que apresentei neste ano de 2023, fazendo um recorte de algumas formulações, já que a aula tinha 26 páginas. A ideia é situar nosso curso para o conjunto do Departamento.
Este curso foi criado com múltiplos propósitos; há 26 anos, foi pensado fundamentalmente como um curso que permitisse oferecer ferramentas novas para profissionais de diversas áreas que queriam ampliar seu conhecimento e poder delas dispor para alargar a potência de suas especialidades. Naquele momento vimos a necessidade de pensar num curso de transmissão dos conceitos psicanalíticos que fosse oferecido a todos aqueles que vinham se interessando cada vez mais pela psicanálise como um saber que podia ampliar sua compreensão de certos fenômenos que implicavam a subjetividade. Pensamos num curso que oferecesse aberturas para entender a subjetividade e alguns fenômenos do mundo, um mundo que cada vez se mostrava mais complexo e, ao mesmo tempo, como um curso que oferecesse uma perna do tripé necessário para aqueles que queriam começar num futuro uma formação.
Assim foi que pensamos um programa que percorresse uma espinha dorsal mínima que nos ajudaria, desde a psicanálise, a compreender situações sociais e subjetivas que estavam ao nosso redor. É a partir destas premissas que entendemos que nosso curso é um curso de transmissão dos conceitos psicanalíticos e não um curso de formação.
Nos últimos 10 anos, grande quantidade de cursos, alguns muito pouco confiáveis, se oferecem para dar formação. São oferecidos cursos de fim de semana, pacotes de três aulas para aprender o manejo clínico, assim como cursos que prometem titulação e até trabalho remunerado; aceitam-se inclusive pessoas que não têm formação universitária – condição mínima que Freud propunha para uma formação de analista, em seu texto A questão da análise leiga (1926).
A demanda e a oferta indiscriminadas têm banalizado a complexidade que implica conhecer uma teoria ou exercer uma prática que demanda muito tempo de estudo e uma formação permanente e interminável. A justificativa de se ter percorrido muitos anos de análise cria a ilusão que se pode exercer este ofício sem mais considerações. Ainda que a psicanálise não seja uma Weltanschauung, ou esquema totalizante de mundo – como pretendia Jung –, ela se oferece como Weltanschauung científica. Freud nos diz em sua Conferência XXXV[3] que a psicanálise não é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, pois o progresso no trabalho científico se consuma exatamente como numa análise. Aportam-se certas expectativas, mas por meio da pesquisa elas vão se corroborando ou descartando, o que requer muita paciência e uma atitude livre de preconceitos para descartar hipóteses e considerar outras novas. A teoria se apresenta como um corpo que tem fundamentos e cujas articulações se encontram no processo de construção do conhecimento. Isto delimita seu poder totalizante, por não pretender dar conta de um todo sem faltas, e sim de um conjunto de ideias que deixa aberturas a serem investigadas, fendas, brechas, vazios e buracos. Um conjunto de ideias que devem ser repensadas, postas à prova e reformuladas à medida que se modifica o entorno, se percorre a história e as condições de produção social e de subjetividades vão se modificando. Todas estas condições criam novas problemáticas.
A psicanálise se apresenta portanto como um saber incompleto, deixando espaço para o conceito de desamparo e, desde Freud, tem muito o que somar à ciência para a compreensão do homem e de seu funcionamento psíquico. Vale lembrar que hoje em dia tem se levantado uma polêmica sobre o caráter científico da psicanálise, polêmica marqueteira que foi muito bem respondida por muitos colegas. De fato, Freud revia suas formulações à medida que descobria novos fatores e sempre se questionou sobre o caráter científico deste saber. A pergunta seria: Quando se fala de ciência, a que ciência nos referimos? Interessa verdadeiramente à psicanálise ser qualificada nesse campo epistêmico, se por ciência se caracterizam as ciências duras e experimentais, a ciência como evidência reveladora da realidade?
A psicanálise não é uma filosofia ou uma religião; ela se situa em um lugar que responde a vários imaginários, e sua possibilidade de ocupar um espaço extramuros como saber de referência para outras práticas a descola da ideia de ser simplesmente uma psicoterapia. É interessante reforçar a ideia de que o fato de poder ampliar a leitura de outros saberes, assim como de ser por eles afetada, não a transforma numa cosmovisão, e sim diz respeito a uma abordagem ética sobre a problemática que envolve o sujeito e suas relações sociais, assim como em sua relação com sua incompletude.
Entendemos que nosso saber abre novos horizontes para entender o sujeito e o mundo, porque se oferece como ferramenta que, em sua forma ampliada, se engaja com a psicologia social, a antropologia, a política, a história e oferece elementos que desvendam questões para a compreensão das artes. Esta posição de ampla circulação beneficia, mas também coloca em risco a teoria, expondo-a a uma banalização do conhecimento que a transformasse em um conhecimento superficial e nos tornasse simples sujeitos de consumo. A questão que se coloca é como democratizar a transmissão e o uso da psicanálise sem que se perca o eixo que caracteriza este saber como tal. Quando permanecemos dentro do campo psicanalítico ou quais são as características que se reconhecem próprias deste campo?
A psicanálise como prática também virou novo objeto de desejo; assim, em 2023 fomos procurados por um grande número de alunos, o que nos obrigou a fazer um corte mais restrito do que esperávamos nas aprovações – corte necessário para manter a profundidade e a natureza de nosso trabalho.
Em relação a pensá-lo como uma primeira via de aprofundamento de conhecimento para quem estava pensando em percorrer, no futuro, uma formação psicanalítica, também tivemos surpresas! Nos últimos anos, constatamos que muitos dos alunos que nos procuravam estavam buscando o caminho para iniciar uma nova profissão, seja porque já estavam encerrando uma vida profissional exitosa e queriam uma nova atividade para uma fase mais avançada da vida, seja porque se encontravam insatisfeitos com a profissão que tinham escolhido e tentavam fazer uma mudança sem precisar cursar uma nova faculdade. Aqui aparece um equívoco, pois o fato de a psicanálise não ser uma profissão regulamentada não implica que seja um percurso mais curto ou menos exigente; pelo contrário, implica mais dedicação e trabalho, já que o reconhecimento virá dos pares e dos pacientes e não da obtenção de um certificado.
A formação de um psicanalista requer muitos anos de estudo, muito tempo de análise e o exercício da prática clínica com uma supervisão que permita entender a densidade da transferência e a dificuldade que implica trabalhar e sustentar a dor alheia, para que seja possível que o sujeito se confronte com seu desejo, antes recalcado ou renegado por conta de sua história pessoal. Um tratamento psicanalítico implica a grande responsabilidade do analista de entender que seu trabalho não trata de conduzir a vida do outro ou de lhe impor seus próprios desejos. Eis o sentido do conceito de abstinência em psicanálise: não se refere a uma neutralidade política do sujeito psicanalista, nem de eximi-lo do papel que lhe toca jogar na história; não se trata de se abster da vida, mas de ser capaz de suportar não se transformar em mestre nem se colocar como modelo. Trata-se, por fim, de poder renunciar ao narcisismo de acreditar que a falta só está no outro e não em si mesmo.
Nenhuma produção que se rege pelo desejo pode ser neutra; estamos sempre implicados, mas é a partir da possibilidade que nos oferece nossa própria análise pessoal que podemos nos colocar no lugar de suposto saber que o outro nos atribui, sem acreditarmos que de fato sabemos ou que ocupamos efetivo lugar do saber.
O diagnóstico em psicanálise não é só uma decisão técnica, clínica ou científica: o diagnóstico é também uma decisão política, já que implica o sujeito nos processos de emancipação social de modo crítico. A psicanálise é um processo de desalienação, um encontro do sujeito com a sua verdade. A teoria psicanalítica se refere à construção de ideias e conceitos que se articulam tanto em processos individuais como de socialização. Aborda o indivíduo mas também o laço social, e esta é uma razão expressiva para o papel importante que têm as instituições na formação. A psicanálise se pensa levando em conta as instituições que sustentam sua transmissão. Política institucional, política na teoria e política na cidadania. O método psicanalítico imbrica indivíduo e sociedade e os textos sociais de Freud também nos mostram os processos incipientes do que será a psicologia individual.
A modo de exemplo, em Totem e tabu (1913) identificamos os primórdios e a nascença do que será metapsicologicamente o superego; em O mal-estar na cultura encontramos elementos que nos falam do indivíduo e sua interioridade, tocando os temas da repressão e do recalque; assim como podemos encontrar, nos textos francamente metapsicológicos, elementos que nos falam do laço social, do papel da alteridade na constituição subjetiva. Sem dúvida aprender psicanálise em nossa instituição é uma opção de responsabilidade, e é necessário conhecer alguns dos alicerces em que nos apoiamos.
A teoria não é neutra: as leituras se fazem desde algum lugar. O Sedes é um espaço comprometido com a justiça social, com a diversidade em todos os seus aspectos e, na atualidade, com o combate ao racismo estrutural que atravessa nossa sociedade neocolonialista. Atravessada pelo momento atual e por nossa história, no final de 2020 foi fundada a Política de Reparação e Ações Afirmativas em nosso Departamento e começou em 2022 a implantação de cotas raciais em todo o Instituto Sedes. Como expressa um comunicado do Departamento de Psicanálise, “Para o conjunto do Departamento de Psicanálise, as cotas raciais são parte de uma política de ações afirmativas, que visa à desconstrução do racismo estrutural”. A implantação das cotas definidas pela Diretoria do Instituto confere a cada curso de especialização e aperfeiçoamento possibilidades de receber cotistas pretos, pardos e indígenas isentos do pagamento de suas mensalidades ao longo da duração do curso, passo fundamental para reiterar nosso compromisso com a reparação das desigualdades que colonialmente tocam negros e indígenas em nosso país.
Quem se dispõe a estudar psicanálise no Sedes precisa saber que vai fazê-lo num instituto que tem história, que sempre se comprometeu com a justiça social, que lutou contra a ditadura e que hoje em seu aggiornamento enfrenta a reparação histórica a que foram submetidos os povos escravizados. Este processo é complexo e está em desenvolvimento. O Departamento de Psicanálise, em sua assembleia do final de 2021, criou um fundo de reserva para poder apoiar outras ações afirmativas, tais como construir dispositivos que viabilizem análise pessoal e supervisão para a formação dos analistas cotistas. Foi criada uma Comissão de Reparação e Ações Afirmativas para elaborar e viabilizar estas ações, que obteve a aprovação da Assembleia do final de 2022 para a criação de um auxílio formação para nossos cotistas.
No tocante ao sofrimento psíquico da população negra provocado pelo racismo, temos que implementar políticas efetivas de reparação também desde nosso saber. Temos que estar atentos, repensar nosso fazer e rever a teoria – pois o que era tratado anteriormente como falta de autoestima em pacientes negros ou pardos, em uma compreensão leviana, hoje tem que ser entendido como sofrimento psíquico causado em negros e negras devido ao preconceito e às discriminações raciais: é necessário legitimar esse sofrimento e é neste sentido que dizemos que o diagnóstico também é político. Se não houvéssemos deslegitimado as falas destes indivíduos, nossa escuta poderia ter sido outra. Sabemos que este é um começo, que muito temos a aprender e que toda esta luta afeta também a psicanálise e a nós como psicanalistas. Esta é a psicanálise que queremos transmitir.
Muito tem se estudado hoje em dia sobre estas questões e numerosos autores desenvolvem pesquisas nesta direção. Os psicanalistas negros têm impulsionado para que este caminho seja feito. Diz Neusa Santos Souza em seu excelente livro Tornar-se negro (p. 16): “O racismo ronda sua existência na condição de um fantasma desde o seu nascimento, ninguém o vê, mas ele existe, embora presente na memória social e atualizado através do preconceito e da discriminação racial ele é sistematicamente negado, se constituindo num problema social com efeitos drásticos sobre o indivíduo”.
Os tempos também nos levaram a pensar sobre o lugar diferente que ocupou a mulher ao longo da história, lugar que foi de submissão e de menos valia, e nos exigem uma compreensão depurada de alguns artigos de Freud relativos ao conceito de perversão e ao caráter perverso polimorfo da pulsão, assim como uma revisão crítica do conceito de falicidade, enquanto derivado causal de uma teoria patriarcalista que primava na época em que Freud elaborava suas teorias. Aprofundando na sua conceitualização, vemos a possibilidade de desligar o conceito de uma simples dualidade de gênero. Hoje em dia podemos tirar grande proveito das formulações da época, por isto a necessidade de nos mantermos atentos ao estudo do que Freud nos ensina, trabalhando-o e pensando-o à luz das mudanças que a sociedade apresenta quanto à diversidade sexual e às numerosas formas pelas quais esta sexualidade se manifesta como formas de estar no mundo. Em síntese, não se trata de desqualificar o que a teoria nos oferece, se trata de conhecê-la com profundidade e de retrabalhá-la à luz de novos aprendizados. Esta é nossa tarefa.
Quanto ao percurso dos conceitos abordados daremos um pequeno panorama de alguns eixos que permanecem como linhas mestras. Na época em que Freud elaborou o arcabouço científico sobre o qual desenvolveria seu modelo metapsicológico, as ciências estavam impregnadas pelos modelos da termodinâmica e pelos modelos deterministas de causa-efeito. Hoje os novos paradigmas científicos nos permitem pensar de um modo diferente, oferecem-nos postulados que abrem novos modos de entender os fenômenos dos quais teremos que dar conta. A partir do século XVI foram surgindo grandes transformações nos processos de legitimação do conhecimento. As cisões da Igreja e o advento do protestantismo ocorreram pela negativa de alguns grupos em aceitar que existisse uma única leitura possível das escrituras. De uma subversão religiosa decorreu, naturalmente, uma subversão no campo social e da ciência, a partir da qual não mais se pode falar de verdades únicas. Estas questões nos levam permanentemente a avaliar se interessa à psicanálise se denominar como uma ciência, ou se preferimos nos referir a ela como um saber que se formula através dos próprios enunciados, que correspondem a uma ética.
O próprio Freud se questionou permanentemente sobre como se formula e se transmite a psicanálise. Hoje não interessa promover o conceito de univocidade como se procurava nos sistemas galileanos e newtonianos. Até mesmo no campo das ciências exatas, a pluralidade de hipóteses é admitida. Dizia Poincaré (1902) que a crença de que as verdades das ciências duras são certezas só pode ser admitida numa mente ingênua. O método clínico, que é o método científico por excelência no campo da psicanálise, guarda pouca conexão com a ciência “fisicista” do século XIX. A verdade do paciente é sempre conjectural. Inclusive no campo da medicina, podemos dizer que não há enfermidades, mas, sim, enfermos, partindo-se da impossibilidade de assumir qualquer tipo de certeza. Conservar a singularidade se faz fundamental na pesquisa psicanalítica. À revolução copernicana, que desloca a Terra do lugar de privilégio, une-se a ferida narcísica que promove a psicanálise, ao reconhecer que a consciência não é o elemento central que se deve analisar para entender as determinações que impulsionam os caminhos psíquicos do homem. Hoje em dia se faz necessário, portanto, repensar o modo como operavam na psicanálise os postulados científicos da época, na forma como aparecem, por exemplo, na construção do Projeto para uma psicologia científica (1895) que acompanha um modelo mais hipotético-dedutivo. Valeria incorporar novos modelos científicos para pensar a psicanálise: a teoria do Caos, as teorias da complexidade, a teoria das estruturas dissipativas que têm como ponto de partida o não equilíbrio.
O programa de nosso curso foi pensado para um primeiro ano e logo adicionamos um segundo ano optativo, que aprofunda e amplia o visto no primeiro.
Começamos pela Autobiografia, situamos Freud e sua época, falamos da Viena de 1890 e aproveitamos para nos situar no nosso momento atual, conforme exposto. No primeiro ano temos três eixos: o conceito de inconsciente; o conceito de pulsão e o estudo da sexualidade infantil como caminho a percorrer para compreender a formação subjetiva.
Um primeiro pilar que nos permite manter nossa especificidade teórica é, portanto, considerar a construção do conceito de Inconsciente como espaço estrangeiro, que deixa o sujeito à mercê de um desconhecido de si. É necessário considerar o deslocamento que faz a psicanálise, de uma concepção ptolomaica de um Eu possuidor da verdade ao recentramento do lugar do Inconsciente. Freud nos diz que é a partir deste conceito que ele estrutura uma nova forma de conhecer e entender os fenômenos da alma. Para permitir que se apropriem deste conceito, fazemos um percurso que vai desde os trabalhos chamados pré-psicanalíticos, oferecendo a leitura fragmentária de dois casos clínicos para acompanhar o processo através do qual Freud se aproxima do conceito de inconsciente. Vamos assim, a partir de seu trabalho com as histéricas, abordando os primeiros estudos de sintomas que não tinham compreensão exitosa no campo da medicina. Incluindo seus conhecimentos como neurologista, Freud descobre que alguns sintomas não correspondiam às vias neurológicas que lhes dariam sentido na medicina. Assim, a partir dos casos clínicos, ele estuda como é possível ter um comprometimento motor ou neurológico que inexplicavelmente produzia dormência ou dor nas mãos, sem que se registrassem os mesmos sintomas na parte anterior do braço. Assim começa a pensar que estes sintomas teriam outra origem que não relativa a uma doença orgânica.
Ao acompanhar o caso de Elizabeth von R., que se encontra na passagem ao método psicanalítico, fazemos uma aproximação à forma pela qual Freud vai fazendo suas descobertas. As noções de recalque, deslocamento, trauma, conflito e resistência fazem suas primeiras aparições. Esboça-se a ideia de que existe uma temporalidade diferente na expressão de sintomas, enunciam-se os dois tempos do trauma e a ideia de ressignificação ou posterioridade, que desenvolve no caso Emma, no qual relata a instauração dos dois tempos do trauma. Introduzir o conceito de ressignificação nos permite entender como alguns fatos ganham sentido a partir de uma concepção de temporalidade que é própria à psicanálise. O conceito de après-coup, retomado e desenvolvido a partir do caso Emma, publicado no Projeto para uma psicologia científica, nos interessa fundamentalmente para mostrar como na psicanálise há um descentramento do sujeito e um tempo que não é linear. A partir daqui retornamos à leitura das Cinco lições de psicanálise que nos abrem o caminho para trabalhar o sentido simbólico das produções psíquicas, parte das quais estão ocultas ao próprio sujeito.
Abordamos assim a construção do conceito de inconsciente, para depois mostrar, a partir da Carta 69, o fundante de realidade psíquica, na qual fantasia e realidade adquirem um relevo particular e produzem um giro importante na teoria. Mergulhamos na ideia de “porque Freud não acredita mais na sua neurótica”.
Outro elemento central para pensar a psicanálise é o deslocamento que Freud produz nos Três ensaios[4] (1905) ao demolir o preconceito de uma sexualidade pré-orientada instintualmente no homem, em benefício de uma pulsão que só encontraria seu objeto de maneira totalmente aleatória na sua história individual, objeto esse essencialmente vicariante e contingente[5]. Essa substituição tira o sujeito do campo da pura biologia e o constitui na sua própria diferença, fora do determinismo biológico, a partir da valorização da fantasia e da linguagem. Abordamos aqui a diferença entre instinto e pulsão.
O terceiro eixo central é o que re-situa a sexualidade infantil como trilha pela qual transita a formação da subjetividade. Estes dois últimos enfoques já começam a ser vislumbrados nos casos clínicos que Freud nos apresenta, mas são temas aprofundados no segundo ano de nosso curso, ao estudarmos a pulsão e a sexualidade infantil de forma central na formação de sintomas.
Neste primeiro ano trabalhamos ainda com o esquema da primeira tópica, uma primeira formulação de Freud para abordar o sistema psíquico. O conceito de inconsciente que transmitimos se refere a esta conceitualização, com a qual apreendemos uma nova perspectiva de existência de um inconsciente, que difere da forma pela qual o inconsciente era percebido pela filosofia e pela psicologia da época. Este conceito sofre grandes modificações na obra freudiana. A primeira tópica é formulada de uma forma mais completa no cap. VII de A Interpretação dos sonhos (1900) e vai se modificando visivelmente na obra até que Freud formula a segunda tópica, que será estudada no segundo ano do curso, introduzindo o tema do narcisismo a a segunda teoria pulsional. Estes esquemas pertencem ao que chamamos de metapsicologia. A metapsicologia elabora um conjunto de elementos conceituais, mais ou menos distantes da experiência, e descreve processos psíquicos nas suas relações dinâmicas, tópicas e econômicas.
Trabalhando as cartas 69 e 71 de Freud a Fliess, nos detemos nos conceitos de trauma e fantasia. O texto do Bloco mágico nos serve como uma preciosa descrição das inscrições inconscientes. Através das Cinco lições de psicanálise abordamos também as questões que diferenciam a forma pela qual um sintoma é lido pela medicina e pela psicanálise. Elas são complementadas com trechos escolhidos de Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e de A interpretação dos sonhos[6] (1900). Ao trabalharmos fundamentalmente o conceito de sintoma a partir da primeira tópica, consideramos a colocação freudiana de que “nossos enfermos sofrem de reminiscências” e que os sintomas são restos e símbolos mnêmicos de certas vivências traumáticas, vivências dolorosas às quais os neuróticos permanecem fixados, desenhando o conceito de neurose, que nos mostra que às vezes os sujeitos se descuidam da realidade por conta destas vivências recalcadas.
O percurso teórico vai sendo acompanhado por relatos de situações que vêm de outros campos de atuação profissional, assim como casos clínicos tanto de Freud como dos próprios alunos ou introduzidos pelos professores para encarnar a teoria. Também os exemplos vindos de outras áreas de atuação de nossos alunos instigam, confrontam e põem à prova os conceitos, criando-se um clima de trabalho que nos põe em contato com uma psicanálise ampliada. Recorrendo às diversas elaborações em relação ao sintoma, destaca-se que em todas estas vivências estava em jogo o surgimento de uma moção de desejo que se encontrava em aguda oposição com os demais interesses do indivíduo, e que parecia ser inconciliável com as exigências éticas e estéticas da personalidade deste sujeito. A partir do conflito sobrevive uma representação que devia ser recalcada e esquecida. Ao adentrarmos toda a complexidade dos conceitos de conflito e de sintoma, desenvolvemos a teoria do recalque, destacando componentes como dissociação, fixação, formação substitutiva, sobredeterminação e sexualidade infantil – conceito que, junto a pulsão, sexuação e sexualidade, será a base do programa do segundo ano, no qual insistimos em situar os conceitos à luz das problemáticas da época, podendo repensá-las nas novas posições que ocupa a mulher e a necessidade de sublinhar a ideia que a pulsão não tem um objeto fixo… com o qual se faz uma abertura às questões de gênero.
Terminamos o programa de primeiro ano com as Conferências introdutórias à psicanálise, de 1916-17, da conferência 17 a 23, nas quais Freud nos introduz no sentido dos sintomas, desenvolvimento libidinal e organizações sexuais e aprofunda os conceitos esboçados nas Cinco lições. No decorrer dos anos temos substituído ou adicionado alguns escritos, porque as diferentes turmas nos vão conduzindo a aprofundar ou discutir certos temas. O programa tem uma espinha dorsal, mas cada professor vai complementando com elementos que decorrem da sua própria relação com a teoria e do grupo com o qual trabalha.
No segundo ano o tema central é a sexualidade infantil e o narcisismo como constitutivos da subjetividade, apresentados em seu jogo dialético. O destaque à sexualidade tem como base a erogeneidade do corpo; não se trata de inscrições instintuais e sim da recolocação da fonte da pulsão, inscrita a partir da presença da alteridade. Fundamental neste devir subjetivo, se coloca o narcisismo e se trabalha o complexo de Édipo numa releitura que permite rever conceitos à luz dos movimentos da sociedade em nossos dias. O Édipo como triangulação independente dos gêneros dos progenitores nos abre ao estudo das novas identificações, na distinção entre os conceitos de gênero e sexo.
No desenlace dessas questões chegamos a uma primeira apresentação da segunda tópica do aparelho psíquico, com primeiras pinceladas sobre a constituição do Supereu, como Ideal do Eu e Juízo moral. Assim mergulhamos em cheio no papel do laço social que permeia estas formações. Tomamos a tarefa de estudar Freud no decorrer do curso e conhecer o que ele diz para, a partir disso, rever e redefinir novos usos conceituais da teoria em função do momento atravessado pela sociedade hoje. Isso só é possível a partir do letramento que nós, professores, devemos fazer para romper preconceitos arraigados em nossa constituição subjetiva. Como psicanalistas nos interessa rever aportes teóricos tomando em consideração o racismo estrutural que nos atravessa e as novas generidades que constituem nosso mundo.
Nossa escolha programática tem se mostrado muito afortunada, incita os alunos que já vinham com algum conhecimento a descobrir e fundamentalmente aprofundar conceitos cruciais para entender o complexo edifício da teoria psicanalítica e suas ligações com a clínica e, para os que não tinham um trajeto anterior, se apresenta como uma descoberta e um desafio que os convida à leitura e lhes permite fazer vínculos com as temáticas que são de interesse na área específica de exercício profissional a que pertencem.
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[1] Originalmente apresentado no evento Entretantos 3, Cá entre nós, realizado pelo Departamento de Psicanálise nos dias 29 e 30 de setembro de 2023 nas dependências do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise e coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma desde 1997.
[3] in Novas conferências introdutórias, 1932.
[4] Freud, S. (1905) Tres ensayos de teoría sexual, Obras completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1988, v. 7.
[5] Laplanche, J. (1987). O inconsciente e o ello. Problematicas 1. Buenos Aires, Amorrortu, p. 117.
[6] Freud, S. (1900) Obras completas, v. 4 – A interpretação dos sonhos (Primeira parte).