Instituto Sedes Sapientiae

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Escutando aqueles que vivem a tragédia no Sul

por Yone Maria Rafaeli[1]

 

“O que é isso que aperta meu peito? Minha alma quer sair para o infinito ou
é a alma do mundo que quer entrar em meu coração?” Rabindranah Tagore

 

Nosso projeto de escuta e intervenção vem sendo realizado desde abril de 2021 junto ao PIM[2] (Primeira Infância Melhor). Neste momento este projeto sofre o impacto da tragédia que assolou centenas de municípios desse estado de forma devastadora. O PIM é um programa de política pública intersetorial de desenvolvimento integral da primeira infância, do governo do Rio Grande do Sul. Ele está presente em 209 municípios e nós atuamos junto ao grupo do município de Alvorada do Sul.

As famílias beneficiárias desse programa recebem visitadores que intervêm junto a famílias com crianças de 0 a 5 anos. Eles levam informações importantes para a inclusão das crianças em programas de políticas públicas de saúde e educação e promovem atividades recreativas com o objetivo de garantir o desenvolvimento físico e mental.

Algumas famílias atendidas perderam suas casas e foram enviadas para abrigos. Aquelas que não perderam suas casas, sofreram o impacto de falta de água, luz e cestas básicas. Perderam também as poucas oportunidades de trabalho, que já eram precárias, por estarem impedidas de circularem pela cidade em consequência da enchente.

Aos visitadores encarregados de atender essas famílias, restou a angústia e o desespero pela impossibilidade de sustentar o trabalho possível, pois algumas famílias cadastradas no programa ficaram dispersas entre os desabrigados da enchente. As gestantes perderam suas consultas, assim como as crianças que recebem atendimentos clínicos deixaram de ser acompanhadas, correndo o risco de uma série de agravamentos de saúde e desenvolvimento.

Apontar possíveis potências nas famílias atendidas pelos visitadores do PIM, passou a requerer ainda mais sustentação junto a uma população que já vivia de forma precária. O que se apresenta agora, é mais precariedade ainda. Soma-se a essa tragédia, a perda das casas sofrida pelos próprios visitadores, tornando-os também desamparados e desabrigados.

A escuta desse desamparo e sofrimento causados pela tragédia, desperta em nós angústias difíceis de conter. Somos inundados por um cenário desolador que bate na barreira da impotência, sem encontrar saídas.

Não é tarefa fácil transformar, de forma solidária, o caos em esperança de futuro. Como transmitir coragem para ultrapassar o desalento coletivo que comparece como angústia em cada um de nós? As dores das perdas são imensas e nós, mesmo estando distantes geograficamente, somos afetados pela potência da catástrofe.

Ao escutarmos relatos de tanto desamparo, o traumático também nos atravessa. O real trágico vivido pelos nossos parceiros do Sul, produziu angústias que nos movimentaram na direção de amenizar a dor das imensas perdas e buscar saídas possíveis para esse cenário de sofrimento.

As narrativas são carregadas de emoções, trazendo histórias de perdas que suscitam outras angústias que se somam pela impotência e pelo desamparo revisitado. Pedaços a serem juntados, buscando ombros para se apoiarem mesmo que o outro também esteja frágil e inseguro.

Hoje o relato é sobre eles, mas tudo isso também diz de nós. Onde encontrar coragem e força para saber por onde seguir? Sonhos desfeitos e refeitos com fios de vida que sobraram. Como se manter vivo, capaz de resistir e insistir depois de tanto sofrer? De que matéria me faço para não me afogar e conseguir atravessar o caos?

Não estamos realizando nossos encontros quinzenais com o grupo de trabalho do PIM desde o dia que as enchentes começaram a afetar o Rio Grande do Sul. Falta de luz, dificuldades de conexão da internet e urgências vividas por eles impediram de manter nossos horários. Criamos a disponibilidade de agendas alternativas e flexíveis para manter minimamente a transferência de anos de trabalho, mas, mesmo assim, não conseguimos retomar ainda.

Ao escutarmos o imenso desamparo e caos vividos, resolvemos iniciar um pedido de ajuda direta a esse grupo, por entendermos que as ajudas governamentais têm seu tempo para chegar e a fome e o desamparo têm urgências. Essa ação rendeu valores que vêm sendo administrados para alimentar as famílias que não tiveram as suas casas alagadas e não estão nos abrigos, mas sofrem as consequências da tragédia por não estarem cadastradas para receber ajuda governamental, e por isso mesmo necessitam de ajuda humanitária.

Como escutar os efeitos da experiência vivida na tragédia e fazer a distinção entre o exercício da cidadania e a função da escuta do analista?

Segue a transcrição autorizada de duas mensagens de voz por parte da gestora do PIM.

Primeira mensagem recebida no sábado 11/05/2024:

“passando para agradecer por tudo, tudo, tudo, por serem essa luz no meu caminho, que me direciona, como uma lanterna, lá onde me perco, vocês são aquele farol onde está tudo escuro. Muito obrigada. Quero dizer que ontem eu acordei gigante e tô aqui agora dentro do meu carro, que estou de banho tomado e meu celtinha está até de rodas baixas de tanto alimento, que minha equipe está trabalhando direto junto comigo e quem tem carro também, levando sacolas e kits de higiene, porque aquela doação inicial, já mudou o quadro e também voltou a água de madrugada, bem escura. Já voltou o sol. Mas só o sol simbólico, que está começando a brilhar no sentido de ânimo e força. Eu sei que a caminhada é muito longa, mas a gente também está conhecendo novos projetos para depois da enchente, para pessoas que perderam tudo. Eu já inscrevi minhas visitadoras que perderam suas casas. A partir daquela primeira conversa com vocês, que abri meu bico e comecei a falar, criei ânimo, eu me desenlouqueci um pouco, a dor ficou suportável, porque a dor estava insuportável. E eu tô aqui com gás, tô seguindo em frente. Eu conversei com as meninas, e elas ainda não estão prontas para conversarem, não tem luz, não tem internet, não tem nada, estamos correndo. Mas assim que der eu entro em contato com vocês para conversarmos todos juntos com os visitadores.”

Mensagem recebida em 24/05/2024, após a falta da gestora em um horário que tínhamos marcado na quinta feira.

“Boa tarde, Yone. Tudo bem? Ontem e hoje também, nós tivemos um grande, grande volume de água. Teve lugares que não haviam sido alagados e foram alagados e uma coisa nova assim que aconteceu: as famílias tinham começado a retornar para suas casas, tinha se criado uma esperança, tinham começado a limpar, algumas famílias, não todas, mas tinha feito um calor fora do normal e aí veio essa chuva tão forte, tão forte, depois de um calor de 31 graus, então meio que secou um pouco as coisas e daí veio uma chuva imensa, com muita força e tudo, tudo que já tinha secado, voltou a ser alagado, voltou e não pode ter aulas em lugar algum e as pessoas por já estarem avisadas e o governador também, então não tivemos vítimas, mas as nossas famílias voltaram para os abrigos e teve abrigos que também encheu de água, então foi bem perturbador. Só queria te contar ontem como foi, e por isso eu não pude entrar para falar com vocês, pois eu tinha que dar um suporte para o meu grupo. Queria te contar que a gente fez uma compra de alimentos e de fraldas, que tudo tinha acabado, e com as novas doações que vocês fizeram hoje, mesmo com a chuva, alguns visitadores que estiveram aqui já foram separando e levando para as famílias que estão em suas casas. A gente está numa situação, que eu nem sei como te explicar: de guerra, como se tivesse tido uma guerra no RS. A gente acompanhou nossa visitadora que perdeu a casa, e não teve quem não chorasse junto. Ela chegando e a gente vê, pessoas que perderam tudo, voltando para suas casas, enfim é bastante doloroso e onde as pessoas vão ficar? Tem lugares que o cheiro de podre, com muitos animais mortos. É muito inexplicável, meio caótico, e a questão da educação, o trânsito, as pessoas aqui na secretaria, está caindo tudo. O telhado é de gesso, a gente tem que deixar tudo meio protegido. Hoje quando eu estava vindo, cheguei bem atrasada, porque os fios estavam caídos, pois as carretas que vem do Brasil todo e tiveram que mudar as rotas e passam por aqui e arrebentam tudo. Arrebentam internet, fio de luz, então é caótico. A gente olha e dá meio que uma desesperança. …. e também te contar que eu comecei a conseguir comer direitinho. Então eu vou ter que me economizar, mesmo estando com os pés agasalhados e essa questão do frio, vou ter que me economizar mesmo. Ontem a noite acabei não indo para os abrigos e nem buscar pessoas na água, então me resguardar para auxiliar essas pessoas daqui de dentro. Desculpa o áudio comprido e quero agradecer essa ajuda financeira que vocês enviaram para nós.”

Ontem, após o evento de lançamento do livro Tempos pandêmicos[3], me deparei com o texto de nossa querida e saudosa Márcia Arantes de 11 de maio de 2020: “O psicanalista na pandemia: Alguns riscos”.

“…quando lidamos com pessoas socialmente desfavorecidas, que sofrem privações gritantes, os limites de nossa possibilidade de atuação podem soar estreitos, nosso trabalho pode parecer pequeno. Sentimo-nos, como cidadãos, convocados a contribuir para a diminuição dessas privações. É um momento em que se faz necessária a distinção entre o exercício da cidadania e a função do psicanalista. para que o lugar do suposto saber se mantenha, é condição que a ação concreta na vida do paciente seja suspensa, que o analista aceite essa limitação. Não há como conciliar ambas as vertentes, uma vez que, uma das funções da análise, entre outras, será desvendar os caminhos da satisfação pulsional aos quais o paciente está atrelado, e que limita sua possibilidade de atuar para solucionar os impasses da própria vida.”

O que sei hoje escutando o relato dessa tragédia, é que nosso lugar de suposto saber escoa como as águas do Sul e pode levar tempo para reencontrarmos nosso lugar na escuta e nossa função de psicanalistas.

Após escutar esses relatos tão perturbadores, o lugar de cidadão falou mais alto, criando uma ruptura que pode parecer incômoda nesse momento, entre o suposto saber e a disposição cidadã. Mas não acomoda a angústia dos sonhos produzidos após receber essas mensagens: sonho que preciso de coragem para atravessar uma enchente na escuridão, que depois se abre para o mar. Fico aguardando a clareza e o brilho do Sol para nos reposicionarmos!

O GT Da gestação à primeira infância, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, iniciou a escuta do grupo do PIM em abril de 2021 com Marcia Arantes e Anna Mehoudar. Depois Marcia Arantes e Yone Maria Rafaeli coordenaram o trabalho com o PIM até outubro de 2023 quando Márcia veio a falecer. Atualmente o trabalho segue a cada quinze dias com Yone Maria Rafaeli e Anna Mehoudar.

São Paulo, 26 de maio de 2024

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Integrantes do GT da gestação à primeira infância: Anna Mehoudar, Claudia Justi Monti Schonberger, Daniela Athuil, Eva Wongtschowski, Gisela Haddad, Gisele Senne de Moraes, Patricia El Id Kanhouche, Silvia Inglese Ribes e Yone Maria Rafaeli.

[3] Arantes, M. (2024) O psicanalista na pandemia: alguns riscos. in Tempos pandêmicos: textos selecionados do blog do departamento de psicanálise do Sedes. Gisela Haddad et all.. 1.ed. São Paulo: Zagodoni, 2024.

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