Icaraí Chartres
por Rubia Delorenzo[1]
I
cemitério – pedras compridas – icaraí
O lugar é obra divina, cheio de luz da natureza. Ouve-se no descampado um murmúrio que insiste. É o sussurro das ondas, o apito do vento que traz o chuvisco de areia das dunas, o cochicho da conversa dos mortos. Dizem que antigamente esse foi um campo distante do mar.
Hoje vem sendo bebido por incessantes marés. O chão mole de umidade não seca nem sob a inclemência do sol.
Assim, pouco a pouco, uma a uma, as moradas caiadas de branco, enfeitadas com rosas de amor, se despedem e navegam como os barcos floridos em dia de Iemanjá.
Uma certa sepultura como as outras deste mesmo lugar será levada pelas águas marinhas, que levarão seus mortos, levarão os ossos e também as cinzas.
Esse é o túmulo de um homem bom.
Vivia numa grande biblioteca. Ali se perdia, escrevia longos diários de viagem, diante da escrivaninha de madeira, relíquia conservada, salva e intacta. Escrevia também às filhas a quem muito amava, tendo dado a elas nomes de joias que compunham coroas de reis.
Dentro da extensa caixa de vidro ao lado da estante fininha, guardava como um tesouro, fragmentos diversos de coisas, memória tatuada de mundos: um colar metálico, um pedaço de tecido num pequeno tear, um adereço de penas, minúsculas armas, o canivete rústico, e belos pigmentos obtidos na trituração de minerais encontrados na beira de rios estrangeiros.
Esse homem conheceu a extravagância de outros povos, mediu-se com o tamanho de animais, viu a dor da guerra, sentiu grande saudade do lar.
Havia naquele terreno sepulturas voláteis cavadas na areia solta, ao lado de construções mais sólidas, embora se adivinhasse que, firme ou fugaz, tudo ali sumiria. Pela história lendária deste campo sagrado, sabemos que o cortejo dos mortos era feito em grande silêncio, seus corpos ajeitados em redes e nunca em caixões fechados.
E tudo se dava sob a luz clara do dia e à vista da imensidão daquelas águas profundas.As preces da multidão pediam pelo infinito descanso e o gesto reverente de todos invocava a benção de Deus na viagem rumo ao espaço aberto do mar.
II
1- O homem e a caixinha de pigmentos
Visto um terno de linho branco para enfrentar as temperaturas. É com ele que me despedirei da vida. Está dito e registrado.
Me cheguei perto do rio com estas vestes de homem formal – aliás, o que sempre fui – e ali na beira das águas, me lembrei.
Num efeito “madeleine” toda a cidade de Chartres se apresentou.
A ponte, o riacho, a barraquinha de crepe, a pequena loja que vendia provimentos para artistas. Aproximei-me da vitrine e vi caixinhas redondas com pós de cores estranhas ao arco-íris, fortes, sanguíneas, violáceas, azul de Giotto, cinza chumbo, preto-carvão. Vi ainda folhas de ouro bem finas que compunham a extraordinária coleção.
Soube, então, que foram tais corantes que deram a tonalidade insólita ao tingimento dos vidros onde a história bíblica era contada na arte sacra dos vitrais.
A Catedral sofreu fogo, sofreu guerras, mas encontrei naquele recinto, diante de sua altura que chama a vertigem, de seu silêncio, daquela luminosidade coada, uma atmosfera de milagres. Concentrei-me em orações com todo o fervor de minha alma religiosa.
Esses pigmentos, com o tempo percebi, continham a minha terra cobiçada, meu grande amor dos começos, tão jovem, tão fresco, a travessia do oceano, a língua estrangeira, a grandeza da fé.
2- Os pigmentos e o homem
Saindo da visita ao santuário, tomado de espanto e maravilha, o homem parou outra vez diante da vitrine da loja. Entrou, visivelmente aturdido, correu os olhos pelo balcão e deixou-os pousar sobre nós.
Depois de sentir a grande emoção por ter visto a claridade que espreitava translúcida entre as frestas das vidraças, nuançada por nossas cores, quando o azul do céu já deixava de ser celeste para ser anil, cobalto, para ser roxo como os mantos dos santos na quaresma, por ter dado olhos à alma, por ter comungado com o belo e o sagrado, ali decidimos.
Quando aqueles olhos castanhos de nascença se iluminaram com os tons de nossos corpos, guardando na íris aquela delicadeza de luz filtrada, aceitamos ficar entre seus pertences por quase um século, até que ele se tornasse um ancião e vestisse pela derradeira vez, seu terno de linho branco para enfrentar as temperaturas.
maio/2024
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste boletim online.