Instituto Sedes Sapientiae

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Minas, reminiscências

por Rubia Delorenzo[1]

 

A criança era pequena. Ainda nem sabia falar.
Quando falou, a primeira palavra foi soprada pela avó. Depois vieram outras, compondo a harmonia das frases, o tom dos pedidos, a severidade das ordens. Muito cedo banhou seu coração a ternura da cantiga de ninar.
E pouco a pouco chegaram os ensinamentos e as superstições. As bênçãos e os amuletos da sorte.
Ali de certa forma, havia um convite para criar uma língua sempre atenta ao ritmo do mundo.
Que escutasse o pio sonoro da ave que adverte. As nuances da voz do rio que corre devagar.
Criar um dizer que fareja o ar pesado da chuva, o anúncio de um dia de sol.
Os sinais da madrugada que se finda e os da luz da tarde que se vai.
Atenta ao estrondo que avisa. Ao aguaceiro que cai.
Que ouve dos galhos que se quebram, seu ruído seco.
E das folhas que caem em terra boa, seu sopro surdo.
Ali, sob o calor da cidade, a criança cresceu. Foi e voltou muitas vezes, naqueles verões…

Um halo de fumaça se elevou.
A noite virou pura claridade.
Um vidro que era fosco virou ar.

É da quentura da infância que falo.
Minha, Minas.

Na tarde abafada, o silêncio.
Silêncio cavado no burburinho ordinário da rua, próprio das casas, dos quintais. De vez em quando, ouve-se o vento que uiva, ou o ruído de um prato que bate na beira da pia, vozes que ecoam, indistintas. Ao longe, o som de um rádio ligado, sertanejo.
Em algum lugar, o ranger das correntes de um balanço, um latido.

Calor africano. Quase quarenta graus.
O corpo se ressente da secura do pó, da estridência da luz.
Tudo convida aos espaços arejados, à
sombra tépida, ao interior.
O ritmo doméstico obedece também ao clima.
Bem cedo, na manhã, faz-se tudo o que exige o esforço dos braços. Sovar a massa, preparar a lenha, passar a roupa com o ferro em brasa.
Manejar o escovão, seu vai-e-vem, que dá vida nova à madeira do assoalho.

O tempo quente pede o linho.
Linho branco bem passado, roupas, toalhas e lençóis.
No enxoval da casa, de tecido fresco e leve, veem-se os monogramas destacados, azuis, bordados no relevo do ponto-ajour.

Na calma dos dias, nas horas lentas da tarde, a lida tinha também o seu frescor.
Era farta a água, regava-se à vontade.
O jardim sedento agradecia.
As pimenteiras, os temperos todos, erguiam-se em suas hastes finas, contentes com o molhe-molhe do chuvisco.
Mas, regava-se também para sobrar um banho, pelo prazer que traz a água doce irrigando o corpo em fogo do verão.
Esse trabalho comum, regular, como tudo, se fazia no vagar.
Ficar ali, sem data nem hora, jogando conversa fora, só lembrando o antigamente: os segredos da cidade, os ilustres, o destino dos parentes.
E como de costume, comentava-se, com muita fé, a liturgia da missa, a caridade do crente e os gestos pausados do monsenhor.
Avaliava-se, além disso, a boa educação das crianças por seus cabelos penteados, molhados ainda, mostrando a limpeza do banho. Sinal de respeito à cerimônia do dia.

Meu avô, médico de família, ia à roça, preocupado com as queixas dos doentes.
Voltava regularmente no final daquelas manhãs, o chapéu e as mãos repletos de provisões: os ovos, o frango vivo, uma perna de leitão. Acomodava ainda em seu farnel, a acelga, a escarola, o jiló amargo e o quiabo gosmento.
Bonito esse escambo da vida do interior.
Por que a galinha criada com a ciência do caboclo não valeria o saber do doutor?
Vale o ovo, vale a couve. Vale, sim, a carambola. Até o marolo, HORRÍVEL de gosto, nojento no aspecto, valia pelo bom doce.

Frutas, no pomar, havia muitas.
Só com J tinha três: jaca, jambo, jabuticaba.
E goiaba que é com G.
Não me apetecia a fruta crua: a textura da
jaca babenta, a goiaba com minhoca, tinha medo de morder.
Mas os doces…
As compoteiras cheias, as formas desmanchadas das frutas cozidas, seu brilho, seu aroma, era muita tentação.
Na cozinha febril de atividade, aproveitava-se tudo: o caldo, a polpa, a casca
e as sementes.
As delícias se faziam com muito gosto e perícia: preparar o alimento, o fogo para cozinhá-lo, dar forma às broas, trançar a rosca, dividir o pão.
Ali respeitava-se tanto a gula como o jejum. Tanto o Carnaval como a quaresma.

A casa era propícia aos dias de festa. A copa larga, a mesa grande.
Todo o espaço fervia. O ir e vir da copa à cozinha, da cozinha ao terreiro, do terreiro ao pomar.
Eu via de longe o peru bêbado cambaleando, prestes a ser degolado.
Via também a galinha em fuga, escolhida para ser cozida no próprio sangue e servida ao molho pardo.
Mesmo sendo comuns esses hábitos, menina do interior jamais esquece essas práticas radicais, os métodos da vida rural.

Quando tudo serenava, nas últimas horas do dia, o cheiro bom de panelas areadas, dos guisados, dos assados e a fragrância do jasmim, ainda inebriavam o ar.
Adorava aqueles momentos, instantes de quietude e devaneio, de verdade e ficção, com o que, sem saber, minha avó nos inundava.
Morgana divagando em frente ao tear.

Não a amava por brincar comigo. Disso nem tenho lembrança.
Amava nela o movimento, seu diligente fazer contínuo. E na sequência, aquele repouso eloquente e a fala quieta que tanto nos aproximava.
Ela era o próprio perfume do caldeirão. Era a paz do serviço concluído, do descanso merecido por tanta dedicação.
Mas, mais do que tudo o que me deu, mais do que as relíquias que conservo – a louça fina, a namoradeira – ela entendeu meu amor pela biblioteca, o prazer da novela e o feitiço do divã. Recostada nele, se transportava ouvindo as histórias de amor e guerra da Rádio Nacional.
Ela me deixou um calor de gente, a confiança na vida e seu persistente amor.

Voltemos. O sonho hoje é passado.
Acordei com o ronco dos motores, voltei para o pó do asfalto esburacado, para a miscelânea de vidros, concreto e aço.
Voltei tropeçando na miséria, desviando dos entregadores estressados, atenta ao roubo de celulares.
Na urbe, o bom convívio se desgastou.
Perdeu sua intenção de partilha, sua atenção para o que está ao redor.
Já não se escuta o tom brando do dizer.
Urbe, vivemos aqui o avesso do sentido da palavra.
Urbanidade, civilidade, gentileza, cortesia.

Minas não há mais?
Sempre se guarda um floco, uma pena de ganso da asa do anjo da procissão. Ou a castanha perdida do caju que enfeitava a tiara nos blocos de carnaval.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, colaboradora deste boletim online.

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