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Homenagem a Oscar Cesarotto

Homenaje a Oscar Cesarotto

por Liliana Emparan[1]

 

Sobre Oscar

Oscar Ángel Cesarotto, psicanalista, professor e artista, colega e compatriota argentino faleceu poucos dias atrás (11-04-2025). Nasceu em Buenos Aires (26-01-1950), “porteño de origen, paulistano por opción y acuariano”, como ele gostava de destacar. De predileções variadas, adorava rock, sorvetes, literatura, astrologia e o surrealismo.

Ainda reverbera em nós o impacto da morte súbita de um psicanalista com percurso marcante; por isso a necessidade de colocar em palavras este breve escrito sobre suas variadas atividades.

Psicanalista lacaniano, discípulo de Oscar Masotta (Escuela Freudiana de Buenos Aires), migrou para o Brasil em 1977 por conta da ditadura na Argentina. Criador do curso de Semiótica psicanalítica – Clínica da cultura na PUC-COGEAE junto a Geraldino Alves de Ferreira Neto (1935-2024) e Márcio Peter de Souza Leite (1949-2012), de quem foi um grande amigo. Também foi docente na ECA-USP do curso Cultura material e consumo: perspectivas semiopsicanalíticas.

Escreveu vários livros e publicações, algumas em coautoria:  O que é psicanálise: 2ª visão (Brasiliense, 1984), Lacan através do espelho (Brasiliense, 1985), Jacques Lacan – uma biografia intelectual (Iluminuras 1993), Um affair freudiano – os escritos de Freud sobre a cocaína (Iluminuras, 1989), Ideias de Lacan (Iluminuras, 1995), No olho do Outro ‘O homem de areia’ segundo Hoffmann, Freud e Gaiman (iluminuras, 1996), entre outros.

Como estilo ousado e irreverente, em seu livro O que é psicanálise? 2ª visão (Cesarotto e Leite, 1987, p.8), provoca o leitor:

Este livro conta a história do exorcismo feito por um bruxo que quis trazer o espírito de Freud de volta a esta velha senhora sem dentes, que, neste ato se rejuvenesceu.
Só que o elixir mefistofélico que este feiticeiro produziu dá tal barato que não conseguimos – nem foi nossa intenção – nos livrar de seus efeitos, e então estamos aqui, formulando nossos abracadabras, para ver se, por sua vez, esse bruxo, ainda que morto, não morra, e tenha sempre o mesmo poder de manter Freud vivo.

Publicou também o livro Contra Natura – Ensaios de psicanálise e antropologia surreal (Iluminuras, 1999). Anos depois, já como doutor em Comunicações e Semiótica pela USP e a partir da tese: El lunfardo, lengua paterna de los argentinos, publica o livro: Tango Malandro (Iluminuras, 2003). Neste livro, as raízes argentinas ganham destaque, numa análise inovadora. Ao referir-se ao lunfardo como língua dos argentinos, destaca:

Como uma brincadeira infantil, capaz de se burlar do mundo adulto e sisudo, o lunfardo permite encarar a vida sob o ângulo da galhofa, mesmo que a gravidade da existência nunca fique excluída da sua concepção do mundo. Por isso, o alcance criativo dos seus termos poderia ser equiparado aos processos do witz, os chistes ou ditos espirituosos que Freud exibia em 1905 para ilustrar a fertilidade significante do inconsciente. (Cesarotto, 2003, p. 93).

Na sequência publica O verão da lata (Iluminuras, 2005), Sedições (Iluminuras, 2008) e Inconsciências (Iluminuras, 2020). É deste último livro que extraio a análise, citada logo abaixo, sobre os ataques à psicanálise e seu campo de saber, onde seu estilo perspicaz e articulador de vários saberes fica revelado.

Na alvorada do terceiro milênio, o inconsciente se encontra sob fogo cruzado, atacado pelo capitalismo predatório, o mal-estar na cultura, a sociedade depressiva, as religiões totalitárias, o consumismo gozoso, aliados ao discurso da ciência, mais cego do que nunca. Alguma vez Lacan disse que a psicanálise era um sintoma da civilização, até chegar um dia em que esta última se curaria dela. Paranoia ou profecia? (Cesarotto, 2019, p.26).

O Oscar artista fica evidente a partir do ano 2000 com as ikebanas lacanianas. Como relata Mario Pujó:

Desde el año 2000, una nueva pasión se apodera de él. Comienza a coleccionar objetos que considera sugerentes o curiosos, adquiriéndolos en puestos de la calle, ferias artesanales y mercados de antigüedades. Una rutina que practica sistemáticamente en sus paseos de domingo y en sus viajes al exterior. Con ellos, reuniéndolos de a tres, construye por pegado o injerto un objeto absolutamente nuevo y original, inexistente hasta el momento de su creación, que posee habitualmente un alto atractivo estético. Como el todo es más que la suma de las partes, el nuevo objeto se convierte en un cuarto elemento que enlaza o contiene a los otros tres. Algo que evoca, en alguna medida, el anudamiento borromeo que propone Lacan para sus tres registros (real, simbólico e imaginario), y que, en su armonía, explica el nombre con que decide bautizarlos Oscar: “ikebanas lacanianas”.

 

 

Sobre mim

Quando soube de seu falecimento algumas cenas passaram pela minha cabeça.

Ao pensar no Oscar Cesarotto uma imagem da minha infância me assalta e persegue: a brincadeira infantil La gallina ciega. Se trata de uma brincadeira livre na qual uma pessoa fica de olhos vendados e precisa tentar pegar pessoas que correm ao seu redor; ao fazê-lo, precisa ainda tentar descobrir quem é. A dificuldade consiste em reconhecer nos traços do outro, como cabelo, rosto ou algum elemento em destaque, quem é esse companheiro/a; para quem é pego, o desafio é não rir, falar, ou evitar qualquer pista que facilite sua descoberta. É um jogo de descoberta, no qual se reconhece e se é reconhecido pelo outro. É muito comum que se diga espontaneamente qual foi a característica que provocou o êxito. Assim, nesta metáfora da brincadeira La gallina ciega, falar sobre Oscar Cesarotto é também falar um pouco sobre mim e sobre a minha descoberta e construção como psicanalista, reconhecer-me e ser reconhecida como tal, também a partir dele.

Oscar foi meu primeiro supervisor clínico, quando eu estava construindo um lugar, uma posição como analista; Oscar era um psicanalista muito admirado por mim. Ele me recebeu, percebendo minha clínica incipiente, e lembro de começar a produzir em mim o desmonte de uma ideia que eu tinha da psicanálise como algo extremamente sério e ortodoxo. Acredito que o escolhi para iniciar minha clínica a partir do lugar geográfico de onde eu vinha, da nossa mesma nacionalidade, com uma história semelhante de migração e por considerá-lo ousado e com humor. Uma certa familiaridade me impulsionou a procurá-lo e a estranheza de sua escuta me interrogou.

Seria possível ser psicanalista em terras estrangeiras?

A metapsicologia seria a rede de proteção que sustentaria um estilo de escuta e manejo analítico que, conjuntamente com a análise pessoal e a supervisão, comporiam os alicerces da construção de uma analista. Caberia, também, o humor e sobretudo a estrangeiridade.

Para minha surpresa, posteriormente ele aceitou um convite e compareceu ao Museu da Imigração (então Memorial do Imigrante) onde junto com a minha amiga e colega Tatiana Inglez-Mazzarella realizamos uma exposição chamada: Raízes da cidade: o testemunho de uma árvore, na qual apresentávamos a história de uma árvore estrangeira (a figueira de bengala, árvore indiana) na história da cidade de São Paulo.  No museu, catalogamos as variadas árvores exóticas (estrangeiras) que compunham o jardim do museu. Sua ida à nossa exposição foi um gesto sensível que indicou presença e testemunho de um percurso.

Algum tempo depois trabalhamos juntos na organização do evento chamado Libertango: Identidades no Mercosul: Diálogos Brasil-Argentina. Era a semana Brasil-Argentina organizada na PUC-SP junto a Luis Esteban Domínguez, Claudio Montoto, Florencia Ferrer e Antonio Rago Filho. Eram conferências, mesas e debates sobre cultura, educação, música, cinema, política e economia de ambos os países.

Destaco aqui, dentro desse grupo do evento, os seus grandes amigos: Luis Esteban Domínguez, arquiteto e historiador argentino. Amigo de Oscar de toda a vida literalmente,  já que suas mães eram amigas anteriormente. Segundo Luis Esteban, Oscar gostava muito de conversar: “eran charlas interminables sobre política, marxismo, astrología, esoterismo.  Eran vários días así, era muy divertido.” Destaco, ainda, seu amigo Claudio César Montoto, também argentino, psicanalista e professor da PUC-SP. Segundo Claudio: “nos encontrábamos a menudo para charlar y almorzar”.

Enfim, algumas lembranças deste grande psicanalista e ser humano; será lembrado por todos nós psicanalistas que admiramos sua obra, coragem e humor.

Por último, cabe destacar que Oscar foi analista e também professor de muitos colegas do Departamento, nos grupos de estudos em que realizou, por décadas, a transmissão da psicanálise.

 

Palavras Finais

Homenagem surrealista: em memória do Oscar

Dali e o Surrealismo recebem fortes influências da psicanálise, tentando afastar-se de um tipo de lógica racional para aproximar-se da lógica e o tempo do inconsciente. Surgem, assim, ao longo de sua obra, trabalhos compostos por vários tipos de objetos que funcionam como símbolos, representantes singulares e sociais. A sua obra é extremamente onírica e audaz.

No quadro A persistência da memória (1931), os relógios retratam principalmente o efêmero do tempo e da vida, e a importância da memória: https://www.moma.org/collection/works/79018

Provavelmente, por tudo isso, Oscar adorava o surrealismo.

¡Gracias y hasta siempre Oscar!

 

 Referências

#LacanEmancipa (28 de abril de 2025). OSCAR CESAROTTO-IN MEMORIAM# Lacan emancipa Revista de la izquierda lacaniana. Recuperado 22 de mayo de 2025 de https://doi.org/10.58079/13stv

Cesarotto, O e Leite, M. P. de S.O que é psicanálise? 2a visão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

Cesarotto, O. Tango Malandro. São Paulo: Iluminuras, 2003.

___________Inconsciências: psicanálise, semiótica, cultura material. São Paulo: Iluminuras, 2019.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Doutora em  Ciências (Psicologia Clínica) pelo IPUSP. Mestre em Psicologia e Educação pela FEUSP. Coordenadora do Projeto Ponte. Professora do curso Clínica com Migrantes do Instituto Sedes Sapientiae.

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