Comentário ao filme Ponto de encontro
por Clarissa Giacomo da Motta[1] e Camila Munhoz[2]
Foto do acervo do Coletivo Filhos & Netos por Memória, Verdade e Justiça
É um prazer enorme para mim e para todo o grupo Faces do traumático receber hoje aqui, no Sedes, Paulina e Roberto, cineastas de Ponto de encontro, e contar com a presença, mesmo que virtual, de Lucho e Alfredo, na conversa que teremos a seguir sobre esse filme tão potente que acabamos de assistir[3]. Enquanto vocês respiram e assentam um pouco o impacto dessa obra e elaboram questões para o nosso debate, gostaria de compartilhar algumas reflexões — como um pequeno aquecimento para a conversa que nos espera em seguida, que é, de fato, o ponto central do nosso encontro. A fala que lerei a seguir foi escrita por mim e por Camila Munhoz.
Começo pelo título: Ponto de Encontro. Quantos encontros cabem no mesmo ponto? Quantas vidas se salvaram e quantas se perderam em frente à Quinta Vergara? Quantos mundos colapsaram após o sequestro daqueles dois homens? E o que é uma vida? Devemos contar as vidas que estavam sendo vividas naquela data? As vidas que tinham acabado de nascer e as que ainda demorariam a nascer, contam? Que vida sobra para quem sobreviveu? Tentar reconstruir um momento terrível exige coragem, coragem de provocar sofrimento em si e nos outros, de se sentir como o algoz que praticou a violência na primeira vez. Lembrar dói? E não lembrar, causa o quê? Se aproximar desse filme a partir de dúvidas e não certezas é seguir o que o cineasta Claude Lanzman, quando fez Shoah, propôs: nunca compreender o incompreensível. Aguero, peruano, filho de militantes do Sendero Luminoso, ao se perguntar se após sofrer violências impensáveis é possível perdoar e esquecer, na mesma linha diz: precisamos partir das dúvidas, com humildade, modéstia e compaixão. Teriam essas perguntas respostas?
Esse filme é sobre o encontro entre Lucho e Alfredo, presos em uma fatídica cela na Vila Grimald durante a ditadura chilena, o que entrelaçou a vida deles e de seus familiares. Esses jovens militantes do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), pais de primeira viagem, moradores da mesma cidade, que viram seus sonhos de um país socialista esfacelarem com o golpe militar de 1973, vieram a se conhecer no cárcere. Lá, puderam se identificar, para além da política, como pais de bebês recém-nascidos, como dois jovens com alegria e gosto pelo jogo (notadamente o dominó) e, também, como vítimas dos horrores da prisão, da tortura, do medo da morte. A história termina com o desaparecimento e assassinato de Alfredo e a soltura de Lucho, que sobreviveu, mas não sem marcas indeléveis.
O documentário é também sobre o encontro, 45 anos depois, da ânsia de Paulina e Alfredo, seus filhos, em tentar juntar as peças, as lembranças, os cacos de um mosaico narrativo desconexo, reunido pelo fluxo contínuo de dor. É ainda sobre o encontro entre as histórias de Silvia e Ginny, duas mulheres que no susto viram seu mundo e projeto de futuro ruírem e o que foram e não foram capazes de fazer com os escombros. Além disso, é sobre o encontro entre gerações, e a tentativa de, ao costurar fatos, memórias, ser possível reconstituir e transmitir para os descendentes de Lucho e Alfredo, uma história que é também deles. E é disso que se trata aqui: de memória, de transmissão, de testemunho, de história em busca de sentido.
Porque o trauma não termina no corpo de quem o vive. Ele se espalha – como fragmento, lacuna, silêncio – afetando também aqueles que estão perto, os que vêm depois, descendentes ou não. Eles e todos nós.
Mas quais são as possibilidades e os limites de tal transmissão? Seriam as palavras suficientes para dar conta da magnitude do que se viveu e do que se perdeu? A psicanalista Mariana Wikinski nos lembra que, nas situações traumáticas, não há relato que dê conta da factualidade do acontecido, pois quase invariavelmente o aparelho perceptivo é afetado. Ela diz: “Vem em nosso auxílio, nesse sentido, o conceito de signos de percepção, signos primários que ficam desprendidos da recordação traumática, dão conta da sensorialidade do vivido, circulam erráticos pelo aparelho psíquico, nem conscientes, nem inconscientes, não sepultáveis, e permanecem em estado puro à medida que não sejam enlaçados simbolicamente com outras representações”. Wikinski segue dizendo que, frente ao trauma, “não há um sujeito que se recorda, mas sim um aparelho psíquico tomado de assalto” (Wikinski, p. 45). Nesse sentido, como transmitir o que foi vivido no corpo e que dificilmente se traduz em palavras? Como transmitir a rigidez do corpo encarcerado? A textura do medo? O cheiro da cela? Os sons da escuridão?
A partir dessa compreensão, podemos afirmar que as situações traumáticas desorganizam o que foi articulado, alteram a forma como o Eu pôde até aquele momento se organizar em “um eixo de consistência subjetiva”, afetando, assim, seus mecanismos de defesa e seus traços de identidade, produzindo o que Wikinski denomina como “fraturas na construção da memória” (p. 45). Um dos efeitos do trauma é a impossibilidade de contarmos com um relato do acontecimento real, como se fosse uma foto, uma transcrição literal. Onde as palavras se mostram insuficientes, a arte aparece como recurso para tocar o corpo, convocar sensorialidades e afetos, nos fazer entender pelas entranhas. Ponto de Encontro nos mostra como a arte pode oferecer um espaço transicional — esse entre-lugar entre o vivido e o representado. Dessa forma, o documentário é também um encontro entre a realidade e a encenação. Os atores interpretando os mortos, os vivos sendo convidados a testemunhar — tudo se mistura. E, nessa mistura, algo se move. Será? A cena em que Silvia abraça o ator que interpreta Alfredo é profundamente tocante. Um momento quase alucinatório, em que realidade e encenação se borram. Ali, ela abraça o marido. Ou tenta. Ou abraça sua ausência. E nos perguntamos: foi um momento de elaboração ou de retraumatização? Ou seriam os dois? Porque figurar o horror também pode ser insuportável. Tentar preencher as lacunas pode despedaçar. Mas haveria outro caminho de enfrentamento possível que não esse? Os riscos de não se tentar também existem.
Jorge Semprun, um escritor, militante comunista e sobrevivente de um campo de concentração, conseguiu fazer algo com suas memórias apenas no final de sua vida. Sobre isso, ele diz: “No entanto, vem-me uma dúvida sobre a possibilidade de contar. Não que a experiência vivida seja indizível. Ela foi invivível, o que é outra coisa, como se compreenderá facilmente. Outra coisa que não se refere à forma de um relato possível, mas à sua substância. Não à sua articulação, mas à sua densidade. Só alcançarão essa substância, essa densidade transparente os que souberem fazer de seu testemunho um objeto artístico, um espaço de criação. Ou de recriação. Só o artifício de um relato que se possa controlar conseguirá transmitir parcialmente a verdade do testemunho”.
A arte, nesse filme, funciona como esse campo entre o dentro e o fora, entre o vivido e o pensado, entre o horror e a possibilidade de simbolizá-lo, entre a submissão ao outro e o controle da cena ensaiada. A arte, assim como o brincar, que aparece no jogo de dominó, descolam o sujeito de uma realidade insuportável. Na prisão, Lucho e Alfredo, ao fazerem uma transgressão criativa, fazem uso desse jogo como partilha de afetos e resistência ao desespero e à morte. Ao final do filme, apresentar o dominó para as próximas gerações é, ainda, uma aposta na continuidade da vida.
Ao colocarem o próprio corpo para viverem a construção desse documentário e reviverem a história ocorrida há 45 anos, assistimos à tentativa de nossos protagonistas de reintegrar pedaços de si-mesmos. Como no caso de Alfredo, o filho. Afinal, a violência perpetrada pelo Estado não se encerrou com o sequestro, assassinato e desaparecimento do corpo de seu pai, pelo contrário. Um dos efeitos dessa violência irresoluta, fica claro no fato de Alfredo viver e atuar sua raiva, provocando medo de que seu destino repetisse o de seu pai. Violência e raiva que só se dissipam no nascimento das filhas, manifestação mais que expressiva da pulsão de vida vencendo a de morte. No entanto, ainda sobrava um corpo insepulto. A vivência-encenação no documentário, parece, nesse sentido, apresentar o que não se viveu, possibilitar o testemunho de seu assassinato, devolver o corpo roubado.
Mas, mesmo com toda a força do cinema, seria a encenação suficiente para devolver algo de Alfredo a seus familiares e contribuir com seus processos de luto? Teria sido a raiva aplacada, o vazio apaziguado? Haveria reparação possível para tamanha violência perpetrada pelo Estado? E no caso de Lucho? Quais os efeitos para si-mesmo de seu testemunho? Apesar de ter sobrevivido, o homem que voltou não era mais o mesmo. No filme, ele afirma que estava quebrado. Para além das marcas da tortura, como lidar com o peso das escolhas feitas? Escolhas que marcaram não só a ele. E Paulina e Ginny? Como lidar com a complexidade de serem vítimas do Estado, mas também das escolhas feitas por aquele que foi vitimado? A travessia de Paulina no filme , entre tentar compreender o pai e chegar a se reconhecer como mais uma das afetadas pelo trauma, é um dos possíveis efeitos reparadores do documentário.
O filme, é, por fim, um encontro, entre o privado, a solidão do traumático de vítimas de crimes de Estado, e as histórias ditatoriais dos países da América Latina, o que concerne a todos nós. O passado e sua herança nefasta seguem assombrando o presente. Afinal, o que não é reconhecido socialmente, elaborado, significado e levado à justiça, para que haja alguma reparação, retorna como um assombro recusado e segue esgarçando o tecido social.
Podemos ver isso com as imagens do “Estallido Social” (explosão social) de 2019. Como uma “coincidência”, na época da filmagem, ocorreu no Chile uma das maiores ondas de protestos sociais da América Latina. Tudo começou com o anúncio de aumento da tarifa de metrô que desencadeou uma onda de boicotes e protestos, iniciada por estudantes. A repressão policial foi truculenta e a violência escalou. O então presidente decretou Estado de Emergência e enviou o exército às ruas. A revolta cresceu e se espalhou pelo país, com duras críticas à violência, ao modelo econômico neoliberal, à desigualdade social, à ilegitimidade da constituição de 1980, tudo isso heranças da ditadura de Pinochet. Mais vidas ainda afetadas. Mas, não seria a violência do Estallido uma forma da memória não reconhecida do período da ditadura se apresentar?
E é por isso que Ponto de encontro não é apenas um filme de memória. É um filme sobre a necessidade da memória como gesto ético, político e psíquico. É sobre necessitarmos, como nos diz a psicanalista argentina Elina Aguiar, da memória e de algo a mais: precisamos “aprender a não fecharmos os olhos frente àquilo que segue vigente daquele desastre” (p. 27). É preciso construirmos narrativas coletivas sobre o acontecido que possam embasar a busca por justiça e por movimentos reparatórios. Ainda com Aguiar, “recordar, denunciar e repudiar o terrorismo de Estado não basta. Podemos nos perguntar sobre nossa responsabilidade sobre o silêncio e a impunidade com que seguem se atualizando hoje nas formas atuais de marginalização homicida que estão naturalizadas” (p. 33).
Por fim, retomo a imagem do mosaico trazida por Lucho. Ainda no começo do documentário, ele diz: “Só vocês, os filhos, poderiam contar essa história. Eu não conseguiria”. Talvez essa seja uma das heranças do trauma: a tarefa de dar continuidade ao que foi interrompido. Não apenas por necessidade de compreender o que ficou enigmático, recusado, não-elaborado. Mas porque as marcas violentas e sangrentas das gerações passadas também nos constituem, nos assombram e é preciso que nós, das gerações seguintes, nos responsabilizemos por elas. Nesse sentido, contar a história não para fechá-la em uma imagem definitiva e estática, mas para colocá-la em movimento. Ao acabar em um encontro festivo, o documentário nos faz pensar: haveria, afinal, reparação possível após a travessia do mortífero? O vidro da janela quebrada, por outro lado, nos remete a um resto incapturável, algo que nos escapa, irresoluto. E é justamente nesse ponto — esse ponto de encontro entre o que pode ser dito e o que resta mudo — que também nos encontramos hoje.
02/08/25
Bibliografia
Aguero, José Carlos. Los rendidos: sobre el don de perdonar. 1a edição, 5a reimpressão. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2018.
Aguiar, Elina. Más que memoria: construyendo futuro con memoria. Em: El dolor social de nuestro tiempo. Néstor Carlinsky; Juan José Falcone; Nilda Rodríguez Rafaelli. 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:Lugar Editorial, 2018.
Lanzman, C. Hier Ist Kein Warum (Folheto do filme Shoah). Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 1986.
Semprun, J. A escrita ou a vida. (trad. Rosa Freire d´Aguiar). Companhia das Letras: São Paulo, 1995.
Wikinski, Mariana. A voz das testemunhas. Em: Grupo Faces do Traumático (org.) Testemunho e experiência traumática: traumas em tempos de catástrofe. São Paulo: Escuta, 2023.
A 5 años del Estallido Social: ¿Cómo se originó y qué provocó? | Radio UC
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
[3] O filme se encontra disponível em: https://ondamedia.cl/statics/shows/punto-de-encuentro.html