Roda conversa sobre Cartas a um velho terapeuta no Sedes
por Fabiana Gomes[1]
Uma fria manhã de terça-feira, 26 de agosto. O auditório do Instituto Sedes Sapientiae, surpreendentemente lotado, já deixava claro o interesse que o tema desperta. Ali, os psicanalistas Thais Klein (UFF) e Érico Andrade (UFPE) se reuniram para a roda de conversa em torno do livro Cartas a um velho terapeuta: a experiência de uma psicanálise não identitária, lançado este ano pela n-1 no ato de publicação que aconteceu em 23 de agosto na Praça Roosevelt. Silencioso à frente da plateia, o grande crucifixo tradicional do auditório parecia testemunhar o debate que se iniciava — ironicamente, um debate que viria a questionar justamente ideais de universalidade e neutralidade.
Ana Carolina Vasarhelyi de Paula Santos, da área de Eventos do Conselho de Direção, deu as boas-vindas. Lembrou que o encontro nasceu como uma roda menor e destacou o poder provocador do livro, que desafia a psicanálise a se repensar frente às demandas de corpos e territórios historicamente marginalizados. Em seguida, apresentou a mediadora Anne Egídio, do Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar, destacando sua trajetória na luta antirracista.
Anne fez um retrospecto da trajetória do grupo, conhecido internamente como GTACME, criado em 2018 a partir da angústia solitária de uma aluna negra em um espaço de formação psicanalítica majoritariamente branco. O GT se tornou um espaço de estudo, pesquisa e intervenção sobre os efeitos do trauma histórico da escravização, dando visibilidade ao que costuma ficar à margem da simbolização. De lá pra cá, o Departamento de Psicanálise articulou ações decisivas: a aprovação da política de cotas (2020), a criação da Comissão de Reparação e Ações Afirmativas (2022), oficinas de Aquilombamento afetivo e letramento racial realizadas desde 2022 pela Comissão de Reparação em parceria com o GTACME. E agora prepara a Jornada Psicanálise e Racismo: do pensamento à ação, mostrando que o compromisso é transformar reflexão crítica em prática institucional de fato.
O debate
O eixo da discussão foi a crítica ao “mito do analista sem corpo”, espelhando o mito da democracia racial brasileira. Para os autores, a renovação da psicanálise passa obrigatoriamente por recolocar a corporeidade no centro da clínica e do pensamento, já que racismo e sexismo são estruturantes e relacionais. “É preciso tirar o corpo do analista do armário”, provocou Érico Andrade. Thais Klein esclareceu que o “velho” do título não é uma questão etária, mas sim referência à urgência de “rejuvenescer” a psicanálise, deslocando seus fundamentos.
Escrito em formato de cartas, o livro propõe um diálogo entre passado, presente e futuro da psicanálise. Tensiona sua matriz epistêmica — marcada por um suposto universalismo — e convida a revisitar conceitos a partir da presença de corpos e territórios até então deixados de lado.
Em seguida, abriu-se a roda para o público. Tide Setúbal, professora do curso Conflito e Sintoma e coordenadora do projeto Territórios clínicos, questionou como articular teoria e prática psicanalíticas diante de settings e territórios múltiplos, onde corpo e ambiente são centrais: “O que resta dos conceitos e da técnica quando a clínica sai do setting tradicional e coloca o corpo e o território no centro de sua prática?”
Na mesma linha, Noemi Moritz Kon, professora do curso de Psicanálise, perguntou: “O que permanece da psicanálise e de sua tarja de universalidade a partir dessas outras perspectivas?”
Já Renata Arouca compartilhou um relato pessoal: formada em instituição filiada à IPA, viveu sua análise didática como uma experiência violenta. E questionou: “Quem pode, quem se intitula apto a analisar alguém em formação?”.
Em resposta, Thais ponderou que, por ser um movimento em curso, é difícil categorizar. Não saberia dizer se é psicanálise aplicada, em extensão ou em intensão[2]. “São psicanalistas realizando uma escuta psicanalítica”, disse. A proposta é levar os conceitos criados a partir do setting tradicional de Freud e ver até onde eles aguentam ir. “O que pode ser a psicanálise?”, perguntou.
Citando Donna Haraway, trouxe à tona a pergunta: Como esses atores humanos e não-humanos participam dessa clínica? Insistiu que o ambiente nunca é neutro – sempre participa – e que a experiência relacional de estar com o outro é parte fundamental da psicanálise. E provocou: “Para que serve a nossa psicopatologia?”. Lembrou que até Lacan rompeu com tradições que pareciam intocáveis e, sobre a hipótese da morte da psicanálise, citou Mercedes Sosa: “Tantas vezes me mataram, tantas vezes eu morri”.
Érico, por sua vez, trouxe o tom de uma conversa com Ailton Krenak, de quem escutou: “Vocês brancos são muito apressados, muitas vezes querem uma resposta que só o tempo permitirá”. Ressaltou que a história da psicanálise é feita de conflitos — e o presente não é exceção. Vivemos mais uma “DR” da psicanálise consigo mesma. E concluiu, com humor e precisão: conflito existe para gerar vida. Para finalizar, como autora deste relato, arrisco aqui uma brincadeira com o nome do curso do Departamento, Conflito e Sintoma: Acompanhando os conflitos – e os sintomas que daí advêm –, cabe a nós trabalhar, em movimento, com aquilo que se apresenta. Afinal, a psicanálise está em obras — e em algum momento não esteve? Como lembrou Ana Carolina, citando Gilberto Gil, feito um grão, nossa semente de ilusão tem que morrer pra germinar.
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[1] Psicanalista em formação no Curso de Psicanálise, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan diferencia psicanálise em extensão — a presença da psicanálise no mundo, em diálogo com outras áreas do saber — de psicanálise em intensão, que seria a prática analítica propriamente dita, referida ao tratamento individual em sua dimensão ética.