
Aquisição da linguagem de crianças surdas filhas de pais ouvintes: uma questão complexa
Luciana Branco Carnevale, Maria Francisca Andrade Ferreira Lier-Devitto, Desirée De Vit Begrow, Lucia Arantes
As questões acerca da surdez são atravessadas na contemporaneidade por diferentes olhares e discussões. Uma das principais bandeiras de luta da população surda concerne ao direito do surdo de adquirir uma língua de sinais sob o entendimento de que a transmissão dessa língua não é barrada pelos constrangimentos da condição sensorial auditiva. Com base na compreensão sociológica de que o sujeito surdo constitui suas identidades pela/na língua de sinais, o Brasil reconhece a Libras como meio legal de expressão dos surdos. Contudo, embora a legislação brasileira incentive iniciativas bilíngues, o pouco conhecimento, bem como a não difusão dessa língua na maioria dos espaços de circulação social da população, demonstram a dificuldade e complexidade envolvidas na concretização desse ideário. Ademais, apesar do irrefutável direito do surdo à aquisição de uma língua de sinais, o fato desta ser desconhecida pelos pais ouvintes de crianças surdas, não raro, traz desconforto para eles – uma língua que lhes soa como ‘estrangeira’. No campo de Aquisição da Linguagem, a teorização de Cláudia Lemos (1992, 1997, 2002, dentre outros), conhecida como Interacionismo Brasileiro, permite-nos identificar, considerando o contexto aqui tratado, embaraços significativos. A autora aproxima-se das reflexões de Saussure (1916) e Jakobson (1963; 1973), na Linguística e das obras de Freud e Lacan, na Psicanálise, considerando a mútua relação entre aquisição da linguagem e constituição subjetiva na trajetória da criança de infans a falante de uma língua. O outro ganha relevo em sua proposta enquanto instância de funcionamento da língua. É ele que, movido pelo seu desejo, promove o acesso da criança ao tesouro dos significantes. A língua materna considerada em sua anterioridade lógica relativamente ao sujeito tem “a função de captura entendida como estenograma ou abreviatura […] de processos de subjetivação” (De Lemos, 2002, pág 55). O processo de aquisição da linguagem envolvendo crianças surdas filhas de pais ouvintes torna-se, portanto, fonte de interrogações e reflexões para nós e, ainda, para psicanalistas lacanianos que se ocupam dessa temática (Solé, 2005; Bergés e Balbo, 1997; Lacan, 1978; Meynard, 1995, dentre outros). A Clínica de Linguagem, abordagem teórico-clínica que subsidia este trabalho, estabelece um diálogo-teórico com o Interacionismo, a Linguística e a Psicanálise. Nela, o sintoma na fala ganha estatuto conceitual a partir das reflexões de Maria Francisca Lier-DeVitto (2002, 2019; 2023, 2024, dentre outros). A autora enfatiza o efeito dramático de falas sintomáticas pelo fato de exibirem uma “marca de singularidade”, “uma diferença qualitativa radical e fundamental” que afeta a escuta do outro e “mantém o sujeito à margem de todos os outros falantes” de sua língua (2002, pág.173). Tendo em vista o acima exposto, pretendemos neste trabalho problematizar os efeitos da surdez no processo de aquisição de linguagem de crianças surdas filhas de pais ouvintes.
Palavras-chave: clínica de linguagem; surdez; língua de sinais; aquisição de linguagem.
Clínica de linguagem e a constituição do sujeito surdo
Desirée De Vit Begrow, Lucia Arantes, Luciana Branco Carnevale, Maria Francisca Andrade Ferreira Lier-Devitto
A filiação teórica para este ensaio se dá na Clínica de Linguagem, abordagem clínica, teoricamente sustentada pelo enfrentamento de falas e escritas sintomáticas em uma singular perspectiva inaugurada por Lier-De-Vitto, a partir do Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem no LAEL-PUCSP. Esta perspectiva estabelece um diálogo-teórico com a proposta Interacionista em Aquisição de Linguagem de Claudia De Lemos (1992, 2002, entre outros) e com a Psicanálise pela via das obras de Freud e Lacan Nessa dimensão, somos convocadas a refletir sobre o encontro com o surdo, considerando a ultrapassagem da superficialidade do aparato perceptual suposto como condição necessária à linguagem pela clínica biomédica. De Lemos (2002) afirma a solidariedade entre o processo de aquisição da linguagem e o processo de constituição subjetiva no percurso da criança em direção à língua constituída. A autora dá relevância ao outro intérprete que, enquanto instância de funcionamento da língua, promove o acesso da criança à linguagem. A partir das afirmações da autora refletimos por quais vias a criança surda poderá ser inscrita no simbólico a partir de sua relação com os agentes parentais que são ouvintes. Meynard (2012), psicanalista francês, afirma a necessidade de insistir na dimensão desejante, responsável pela inscrição do sujeito pelo tecido significante. Significante esse marcado no espaço coaptando o outro através do olhar. Nesse sentido, nega-se a lógica da audição e da necessidade de acessar o oral para estar no simbólico da língua e vê-se o existir num modo outro de instanciação da linguagem. É certo que a ideia subjacente ao diagnóstico de uma perda auditiva, manifesta na mãe o delírio de não ser escutada pelo bebê produz efeitos importantes no enlaçamento do Outro com a criança. Para muitas famílias, a suposição de que a perda auditiva impossibilite a interação com o filho tem como consequência uma grande dificuldade em dar lugar de falante à criança surda. Neste ponto, Poizat (2011) diz que a criança invoca a ordem simbólica num corpo desejante, um corpo que se estabelece na relação linguística com o Outro e seu desejo. Por este trilhar, se entende o importante papel do clínico de linguagem nos endereçamentos dados a partir da notícia da perda auditiva, no modo como pode viabilizar, por meio de ato clínico, a existência da criança surda como sujeito de desejo permitindo assim o que pulsa do sujeito na linguagem. Pretendemos à luz das teorizações produzidas nesta abordagem e a partir do encontro com ambos os campos mencionados, oferecer uma reflexão sobre a complexidade envolvida na problemática da aquisição de linguagem envolvendo sujeitos surdos.
Palavras-chave: clínica de linguagem; surdo; aquisição de linguagem; subjetividade.
Clínica de linguagem - o brincar como texto
Paola Lurian Silva
A Clínica de Linguagem, especificamente aquela que se propõe ao tratamento de crianças, prevê um encontro que coloca em questão a reflexão do clínico frente a uma fala sintomática. Refiro-me aqui a uma proposta teórico-clínica que coloca em questão as patologias de linguagem, ou seja, o tratamento de crianças com entraves na relação com a linguagem e, muitas vezes, na relação com o outro. Um clínico de linguagem suspende a obviedade e naturalidade supostas ao brincar, pois nesse encontro coloca-se em questão a escuta de uma fala sintomática, que demanda um outro capaz de produzir mudanças. Importa sublinhar que essa discussão sobre o brincar faz parte dos estudos que compõem o projeto da Clínica de Linguagem, instituído pela Profª Drª Maria Francisca Lier De-Vitto em 1997, no LAEL da PUC/SP. Essa teoria tem produzido importantes reflexões acerca do fazer clínico de fonoaudiólogos em todo âmbito nacional. No âmbito teórico, o solo se dá na aproximação com a Psicanálise para teorizar sobre o sujeito; com o Estruturalismo Europeu (SAUSSURE, 1916; JAKOBSON, 1954/1960), nas concepções sobre a linguagem; e na relação com o Interacionismo proposto por De Lemos (1992, 2002). Importa dizer que essa relação sustenta um diálogo teórico, uma relação de alteridade, que não pode perder de vista seu objeto – no caso da clínica, as falas sintomáticas. Afasta-se radicalmente as noções desenvolvimentistas nesse trabalho que são, nesse sentido, problematizadas. Tomando outra direção, vemos que a Psicanálise permite dar um passo seguro nas reflexões sobre o brincar, pois teoriza sobre o sujeito e sustenta a hipótese do inconsciente – e tal teorização serve a Clínica de Linguagem. Na Psicanálise, o caminho passa por Melanie Klein (1981) e Winnicott (1975), chegando também ao que propôs Flesler (2012). O brincar, nesse trabalho, é entendido como texto, articulando-se com a proposição do brincar e o significante de Rodulfo (1990). Sendo um texto, ficamos frente a articulação de cadeias significantes, impulsionadas pelo desejo. Nesse sentido, não perde de vista que o brincar, enquanto realidade psíquica, é texto cifrado – disso decorre a importância da interpretação na cena clínica. Este trabalho buscou apresentar considerações teóricas da Psicanálise sobre a criança e sobre o brincar que possam servir à prática clínica om crianças que apresentam falas sintomáticas e entraves na relação com a linguagem e o outro. O solo teórico-clínico está assentado tanto no poder estruturante da linguagem, quanto na hipótese do inconsciente, noções que podem ser dialogadas com a proposta da Clínica de Linguagem.
Palavras-chave: linguagem, clínica de linguagem, brincar, falas sintomáticas.