SEXTA-FEIRA | 25 OUTUBRO
MESA 4

"Caixa-de-correio": um objeto intermediário, construindo narrativas singulares e brincadeiras coletivas

Marina da Silva Rodrigues

“Caixa-de-correio”: um objeto intermediário , desejado , inventado , projetado e criado por uma criança dentro do campo de experiência de sua análise pessoal em consultório particular. Venho aqui apresentar e conversar sobre esse dispositivo clínico e comunicador de alteridades. Essa vontade de propiciar um campo de conversas entre crianças ou adolescentes , surgiu em mim desde minha experiência clínica pública dentro de um Caps ij, equipamento de saúde mental do SUS, mas curiosamente ela veio se efetivar na prática do consultório particular. Esse objeto nos permite refletir sobre o retorno à tecnologia analógica , envolvendo uma relação de tempo inversa ao do que comumente vivemos hoje em dia. Nesse tempo está presente a criação e construção de imaginários, que podem ser desenhados enquanto a ideia da espera e pausa se faz também presente. O projeto da criação desse objeto surgiu de P., quando teve curiosidade sobre uma maquete de outra criança exposta em meu consultório: “e se fizéssemos uma caixa de correio e escrevermos como antigamente? Aí já posso perguntar para essa criança sobre sua construção …”. Fizemos. P. é uma criança que está sob a lógica de vida dentro do campo das virtualidades, mas de uma forma “intoxicada”, fazendo referência a ideia das “Intoxicações eletrônicas” , colocada por Julieta Jerusalisky . P. inquieto e agitado, tem inseguranças em relação ao próprio corpo real e uma dependência das telas, onde os games se tornam para ele representantes de objeto supremo de poder. Ao mesmo tempo, essa mesma criança encontrou dentro de si e do setting do me consultório uma possibilidade de sair dessa lógica virtual e quis experimentar uma lógica real e concreta das relações. O objeto caixa-de-correio estando dentro da minha sala, sob os olhos de outras crianças despertou diversos envolvimentos, entre os quais possibilitou uma troca de conversar escritas ou desenhadas com minha mediação. Uma intervenção, um objeto transicional , um jogo intermediário , como coloca o pensamento winnicottiano, onde é possível produzir criativamente e coletivamente correspondências acerca de si e do outro.

Palavras-chave: brincar compartilhado; setting coletivo; tempo virtual x tempo analógico.

Transformações subjetivas e revolução tecnológica: uma compreensão a partir do conceito de contratransferência

Nathalia Teixeira Caldas Campana

A experiência clínica nos mostra que cada vez mais as tecnologias fazem parte do cotidiano das crianças, e em idades cada vez mais precoces. Constatamos um aumento das queixas trazidas pelos pais e pelas escolas aos psicanalistas relacionadas aos diagnósticos de depressão, transtorno alimentar, TEA, TDAH e TOD das crianças. Perguntamo-nos, então, em que medida a participação das tecnologias nas experiências infantis pode estar contribuindo para alterações dos processos de constituição subjetiva. A prática clínica exige que saibamos reconhecer e interpretar como modos de ser e de sofrer singulares se atualizam na situação analítica viva, protagonizada por analista e paciente – situação que a inteligência artificial pode simular, mas não substituir. Assim, a contratransferência – tomada como posição identificatória – se constitui como um instrumento técnico importante e atual para que possamos buscar uma compreensão a respeito da origem das identificações que determinam a forma de ser e de sofrer dos pacientes. A partir dessa noção podemos interpretar ou nos reposicionar de modo a interromper a repetição sintomática. Neste trabalho, propomos a discussão de vinhetas clínicas referentes aos atendimentos de quatro crianças entre 04 e 11 anos de idade. Discutimos quatro possibilidades de interferência da tecnologia no processo de constituição subjetiva das crianças:
Caso a) Tecnologia como suplência de um continente: os eletrônicos apareceram como forma de entretenimento que resultaram em uma vivência de hiperexcitação intelectual; no entanto, como o contato com a pulsão e com o outro fica insuportável, reforçaram-se sintomas autísticos de isolamento, crença no controle e ausência de sentido da experiência;
Caso b) Tecnologia como confirmação e manutenção da onipotência: os jogos de videogame e os vídeos do YouTube foram tomados pela criança como confirmação de que era possível viver em um mundo sem regras, ou em um mundo onde era ele quem dava as regras. Seu comportamento onipotente impôs desafios, especialmente no ambiente escolar, que culminaram na insistência diagnóstica de TOD;
Caso c) Tecnologia como ameaça e/ou sexualidade em cena: a tecnologia era vista pela família como algo ameaçador e perigoso e que deveria ficar de fora da experiência; tomado nesse sentido, o mundo virtual tornou-se objeto de ainda maior interesse e curiosidade. A criança acabou tendo contato com o tema da sexualidade através de conteúdos pornográficos que marcaram sua experiência subjetiva, e precisou de continência para elaborar e se reposicionar socialmente;
Caso d) Tecnologia como vivência narcísica: a rede social foi tomada como forma momentânea de confirmar um ideal, excluir a diferença e promover bullying; em um segundo momento, a criança passou a vivenciar ansiedade e raiva, que acabaram por resultar em uma experiência de vazio e falta de sentido que a paciente denominou como inapetência e representou risco para o surgimento de transtorno alimentar. Nos casos apresentados, encontramos crianças sabidas e com pouco espaço para a criatividade, com dificuldade para vivenciar o encontro com o outro em tempos de tecnologia – as telas, usadas excessivamente por elas, fazem parecer ser possível um encontro perfeito, sem desilusões e angústias, e a partir sempre do próprio referencial, excludente da alteridade que esse encontro possibilitaria. O encontro analítico, nesse sentido, mostra-se fundamental, pois faz frente ao tipo de relação que estabelecemos com a tela e o inumano. Compreender e trabalhar a partir da contratransferência parece-nos necessário e atual como instrumento para promover o encontro das crianças no contemporâneo com o Outro.

Palavras-chave: infância, tecnologia, clínica contemporânea, contratransferência.

Criança sem ânsia

Sophia Vettorazzo

Uma infância são ânsias” nos dizia Marilene Felinto, no seu livro As Mulheres de Tijucopapo. Essa frase, precisamente ressaltada por Maria Rita Kehl, nos serve como disparador para pensar as especificidades da clínica com crianças na pós-modernidade. Estaríamos diante das mesmas “ânsias” dos pequenos observados por Freud há mais cem anos? Quais as “ânsias-desejosase as “ânsias-ansiosas” com que nos defrontamos no espaço analítico? A quem elas pertencem e o que elas nos contam sobre ser criança no século XXI? Na clínica psicanalítica com crianças, temos recebido com maior frequência demandas educativas, endereçadas por famílias e escolas, que buscam soluções para aspectos tidos como indesejados ou diferentesem seus filhos e alunos. Muitas vezes chegam munidas de diagnósticos de outros profissionais da saúde e cheias de certezas e angústias de suas próprias pesquisas na internet. Seus relatos trazem nome e sobrenome de patologias, aliadas a técnicas e práticas a serem seguidas, mas que, por algum motivo, não encontram ressonância na criança que insiste com seu sintoma. São famílias conectadas aos saberes democráticos e superficiais da internet, mas que se mostram perdidas no laço com os filhos. O que leva essas famílias para o espaço analítico é, na realidade, uma demanda objetiva de sanar um sintoma que tanto incômodo traz aos pais não apenas por expor reflexos dos ideais coletivos, mas também por desvelar ainda que disfarçadamente os fantasmas inconscientes parentais que inevitavelmente se refratem no filho (LAPLANCHE,1981). Como repensar uma clínica em que pais buscam respostas objetivas e objetificantes, que os desimplicam do processo analítico? Quais os possíveis manejos para receber crianças marcadas por excessos, fragmentos e descontinuidades? Como é possível despertar o brincar, sintoma constituinte do sujeito na infância, em crianças com muitos compromissos e poucas ideias? Como trabalhar com crianças (e famílias) que nos inquietam justamente por não se inquietarem?  Este trabalho trará luz a essas reflexões, costurando-se a um relato de caso clínico que coloca em evidência a melancolia e a apatia de infâncias que nos preocupam justamente por não mostrarem suas “ânsias”.

Palavras-chave: brincar, melancolia, virtualidade, laço social.