
O desmentido no percurso das crianças em processo de adoção
Cristina Maria Banduk Seguim e Márcia Machado Gimenes
Este texto surge a partir de um trabalho grupal com pais em processo de Adoção, durante os estágios de Aproximação e Convivência, quando a criança entra emcena e logo começa a morar com os adotantes. A experiência da adoção passa por duras provas e envolve vários lutos; do lado dos adotantes o luto pela infertilidade, a impossibilidade de gerar um filho “da barriga” e os desafios de tomar contato com uma criança que, quanto maior for, mais história carrega consigo. Do lado da criança algo deu errado e ela foi separada de sua família. A criança separada viveu situações de muito desamparo e precariedade em sua família de origem, território no qual ela se constituiu psiquicamente e onde se reconhece. Desde seu nascimento até a separação da família, vive experiências com um grande potencial traumático. A assimetria constitutiva de todo humano, coloca a criança em uma posição de assujeitamento diante do outro cuidador de quem ela depende e a quem ama; ao ser separada, passa a viver longe dos primeiros objetos de amor e dependência e o contato entre eles passa a ser regulado pelo Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente – SGDCA – podendo muitas vezes culminar na Destituição do Poder familiar e posterior adoção.Vamos descrever neste texto como fomos observando o desmentido – conceito formulado por Sandor Ferenczi – deslizar em todo o percurso da criança desde a separação de sua familia, passando pela Destituição do Poder Famíliar até a adoção. Neste percurso será necessário um trabalho de luto para que a adoção seja bem sucedida. São sofrimentos diversos que demandam uma reparação de falhas ambientais desde o início de suas vidas, falhas durante sua permanência no SAICA e desafios grandes na preparação para a adoção.O ato fundador dos lacos de filiação se dá ao mesmo tempo em que a criança se desliga de sua família de origem; este desligamento envolve um luto, vivido não sem sofrimento e culpa, ao deixar para trás seus primeiros objetos de amor e poder substituí-los. Recordar e construir suas narrativas são coisas que a criança não faz sozinha, mas são condições para elaborar tudo o que viveu desde o início de sua vida. Abordaremos no texto aspectos do laço de filiação que são favorecedores do trabalho de luto e do enlace e inserção numa nova família.
Palavras-chave:adoção, traumatismo, trabalho de luto, laço de filiação adotiva.
Quando uma criança não é vista como tal e a noção de descriançável
Mariana Belluzzi Ferreira e Márcia Machado Gimenes
Visamos refletir sobre o trabalho de construção de caso e de articulação de rede intersetorial em torno do mesmo realizado junto aos profissionais envolvidos no atendimento a uma criança (12 anos, na época) em acolhimento institucional. Esse trabalho foi realizado pelo Núcleo Acesso (Instituto Sedes Sapientiae). A criança em questão já havia sido submetida a diversas internações psiquiátricas compulsórias, como medida de contenção das manifestações explosivas e agressivas apresentadas em momentos de crise, especialmente diante da repetição de rupturas de laços afetivos. Propunha-se a institucionalização perene da criança, apesar dessas internações não terem produzido melhorias para ela e a despeito dos princípios que regem a Reforma Psiquiátrica brasileira. Tivemos como ponto central no trabalho a problematização dos laços aos quais a criança estava inserida como produtores de subjetividade. O comportamento da criança era entendido como algo intrínseco à sua personalidade, desconsiderando os laços com os quais se constituiu. Observou-se a presença, por parte dos profissionais, de duas concepções antagônicas sobre o caso e, consequentemente, sobre os modos de cuidado dessa criança. A primeira concepção, hegemônica entre os atores que compõem a rede do caso, concebe a criança como um adulto. Nessa concepção, ela não é vista como sujeito em desenvolvimento e, portanto, em processo de aquisição de habilidades e recursos cognitivos, subjetivos, relacionais e sociais. Suas manifestações são compreendidas de modo isolado, dissociado dos laços familiares, institucionais e comunitários nos quais está inserido e que o constituem e ela tende a ser exclusivamente responsabilizada pelas situações de vulnerabilidade vividas, incluindo a não garantia de seus direitos. Nesse contexto de adultização precoce, o caso é compreendido como ”perdido”, restando somente aos profissionais o exercício de práticas de controle, em detrimento das práticas de cuidado. Nesse cenário, os profissionais tendem a desconhecer ou refutar seu importante papel como adultos cuidadores, não se implicando na produção das situações de conflitos, bem como no manejo das mesmas. A esta primeira concepção, Vicentin atribui o termo descriançável. A segunda concepção a concebe como criança, sujeito de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento. A partir dessa concepção suas manifestações podem ser compreendidas como produções relacionais, produzidas a partir da interação com os profissionais e nos contextos institucional e político-social nos quais a criança está inserida e que a constituem; e em detrimento de serem concebidas exclusivamente como produções intrapsíquicas.
Palavras-chave:trabalho em rede, internação compulsória, acolhimento institucional, diagnóstico na infância.
Separação de irmãos em acolhimento institucional: o discurso da proteção e seus efeitos devastadores
Sandra Ungaretti
Este trabalho abordará o complexo enredamento que se faz por meio das ações dos diferentes atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente sobre a vida de irmãos que vivem em instituição de acolhimento e que culminam, muitas vezes, quase sempre, na sua separação para que a adoção seja facilitada, e assim se garanta o Direito Fundamental à convivência familiar e comunitária. Este enunciado pareceu estranho? Ilógico? É isso mesmo! Doido e doído constatar que nas malhas do sistema criado para proteger crianças e adolescentes e garantir seus direitos produzam-se a violência das rupturas dos laços familiares que ainda restam, e a violação, mais uma vez, de seu direito à convivência familiar. Afinal, irmãos não são família? A que família e infância estamos nos referindo? Que não restem dúvidas, o universo deste trabalho é a infância pobre, negra e vulnerabilizada. Num primeiro momento, a expressão “infância colonizada” que compõe o título do presente Colóquio será remetida ao seu campo de conhecimento original, a História, especificamente, a história da assistência à infância no Brasil para faze-la trabalhar desde lá. O propósito deste primeiro tempo será desenhar algumas cenas dessa história para identificar tanto a racionalidade presente na assistência à infância desde à Colônia como sua continuidade em outros períodos históricos. A partir de então, e esta é uma suposição presente de saída neste trabalho, recolocar a expressão infância colonizada desde esta perspectiva histórica: a infância pobre, negra e vulnerabilizada é uma infância colonizada porque nos diversos momentos históricos as premissas do colonialismo estavam e estão presentes recriando sobre novos códigos o abandono, a exclusão e a vulnerabilidade. Num segundo momento, com base no atendimento a grupos de irmãos e também a crianças em acolhimento institucional oferecido por integrantes da equipe clínico-institucional do Núcleo Acesso, se buscará: a) mostrar como os discursos dos diferentes atores – técnicos e juiz da Vara da Infância e da Juventude, técnicos dos serviços de acolhimento institucional e, algumas vezes, terapeutas e analistas das crianças – engendram uma decisão como a separação de irmãos; b) pensar com a psicanálise: o que leva esses profissionais a agirem nessa direção? Que canto de sereia é esse capaz de cegar a todos e leva-los inebriados a mergulharem num mar em detrimento de todos os sinais de perigos anunciados? Num terceiro momento, esses mesmos atendimentos vão embasar a análise dos vínculos fraternos e a partir disso discutir as justificativas de separação dos irmãos apresentadas pelos técnicos tanto das instituições de acolhimento como das Varas da Infância e da Juventude. Num quarto e último momento, para concluir com algum vislumbre de abertura e movimento, pergunta-se: o que nós psicanalistas, analistas de crianças desse universo podemos fazer para não simplesmente assistirmos naturalizando esse funcionamento repetitivo e devastador?
Palavras-chave: infância colonizada, recusa, trauma, vínculo fraterno.