SÁBADO | 26 OUTUBRO

MESA 12

”Você não vê que eu estou morrendo?”
Considerações sobre o Brincar a partir de um caso clínico

Flávia Ripoli Martins

O presente trabalho objetiva discutir, a partir de um caso clínico, as potencialidades do brincar na clínica psicanalítica com crianças como forma de subverter as consequências psíquicas do diagnóstico de uma doença na primeira infância. Hugo, 7 anos e 8 meses, foi trazido para a análise por seus pais porque era considerado por eles uma criança muito agitada, que os preocupava por falar excessivamente sobre o tema da morte. Nascido com um quadro grave de saúde, Hugo foi diagnosticado com Diabetes Tipo I em seus primeiros meses de vida. Ao longo da primeira infância, este menino precisou de diversas intervenções em seu corpo, de modo que os cuidados parentais foram atravessados por preocupações com a sua sobrevivência. A partir das primeiras entrevistas, foi levantada a hipótese de que os momentos angustiantes vividos pelos pais de Hugo tiveram como consequência que a patologia ficasse maior que o menino, fazendo com que muitas vezes ele fosse considerado um “corpo doente que poderia morrer a qualquer hora”, o que dificultou que ele pudesse ser sonhado nas particularidades do que ele poderia vir a ser, para além do diagnóstico. Durante o processo de análise, Hugo encontrou na relação transferencial e a partir do corpo da analista a possibilidade de viver e reviver as etapas de sua constituição psíquica, revisitando particularmente momentos em que a relação com o outro produziu impasses. Ao brincar de morrer de diversas formas, Hugo encontrou a possibilidade de explorar e investigar as angústias de morte que atravessaram sua vida e, particularmente, sua relação com seu corpo. Nestas brincadeiras, ele desafiava a fantasia da iminência de sua própria morte e pôde colocar em curso um processo de simbolização de seu corpo, para além das marcas da fragilidade, da passividade e do adoecimento. A partir deste caso e refletindo sobre as transformações que ocorreram no trabalho clínico, será discutido como o brincar fez advir as potencialidades do que Hugo pode vir a ser, a partir do desafio e da subversão do que a discursividade que o cerca postulava para ele como destino.

Palavras-chave: brincar, caso clínico, diagnóstico.

Transformando os impossíveis em possíveis:
brincar e interpretação na clínica com crianças

Julia Eid

Enquanto a psicanálise clássica se ocupou de buscar o que se ocultava na mente do paciente, certas configurações psíquicas contemporâneas trazem novos desafios clínicos: como trabalhar no campo daquilo que ainda não tem forma, não tem uma organização psíquica e que portanto, não pode ser “encontrado” por não estar inscrito psiquicamente na forma que costumamos chamar de representação? Certos autores da psicanálise contemporânea apontam que a clínica com pacientes em que a capacidade de representar é frágil ou ausente deverá passar por um trabalho de construção ou de co-construção (Levine, 2016). Para seguir nesta discussão, serão apresentadas algumas ideias de Roussillon (2012) acerca do jogo. Para este autor, o jogo e a capacidade de brincar sustentam a parcela de ilusão necessária à vida psíquica; permitem transformar as situações mais dolorosas em situações “boas de simbolizar”.Neste trabalho, proponho analisar fragmentos clínicos em que o trabalho interpretativo de construção ou co-construção acontece lado a lado com o brincar: situações clínicas em que certos impossíveis do paciente se apresentam e exigem do clínico uma intervenção na direção de dar forma, possibilitando que estes impossíveis possam vir a se tornar possíveis, ou seja, para que possam se tornar brincáveis e pensáveis. Para tanto, farei uso dos conceitos de transferência e contratransferência, ação interpretativa, figurabilidade e brincar. Um dos recortes clínicos diz respeito ao trabalho com Carmem, uma criança de 5 anos com uma configuração psíquica frágil. Na sua história com seus primeiros objetos as experiências de separação foram longamente evitadas, dificultando a construção de recursos psíquicos para representar dentro-fora, eu-outro, e para expressar e elaborar sua agressividade. Em certas situações de desencontro com o outro, Carmem se desorganiza psiquicamente e vive angústias de ordem psicótica, perdendo sua frágil e insipiente capacidade de pensar.Numa certa sessão, Carmem vive uma experiência de ruptura. Uma mudança no setting golpeia a sua experiência de existir em continuidade com a sala-analista, provocando uma implosão do seu frágil envelope psíquico. Foi preciso que a analista atravessasse o “impossível” da paciente para que ela o atravessasse também, apoiada no psiquismo da analista. A partir de uma ação-brincadeira, a analista consegue figurar algo da destrutividade da paciente, ação que tem como efeito uma retomada da possibilidade de brincar. O trabalho com essa criança seguirá o caminho de dar forma ao ódio e à raiva que aparecem disruptivamente nas suas experiências de “trombada” com a realidade e o outro. Tomando o espaço da análise como espaço transicional (Winnicott), podemos pensá-lo como lugar em que os impossíveis de cada paciente podem se tornar possíveis, apoiados no brincar e na presença viva do analista.

Palavras-chave: interpretação, construção, brincar, representação.

Cadê? Achou! O aparecimento de uma criança

Nana Navarro

A presente reflexão tem como objetivo contribuir para a discussão sobre a posição da analista para sustentar a clínica com crianças com entraves estruturais na sua constituição. Trata-se da apresentação de um recorte clínico que mostra a repetição de um ato à introdução da linguagem do jogo. Luz acesa, luz apagada, analista dentro da sala, analista fora da sala. Um jogo inicial que me levou a revisitar o texto “Além do princípio do prazer”, quando Freud, em 1920, discutiu uma brincadeira de criança ao descrever o famoso jogo do carretel – fort da – considerado o primeiro jogo de “invenção própria” de seu neto. Freud teorizou sobre uma cena que presenciou, quando a criança, com um ano e meio, impotente frente ao afastamento de sua mãe, brincava com um jogo no qual fazia um carretel sumir e reaparecer. O movimento do brinquedo estava relacionado com as saídas e retornos da mãe, com a substituição do objeto simbolicamente. A criança encena simbolicamente a presença da mãe na ausência. Esta é uma brincadeira precoce, e, no momento observado por Freud, temos a expressão de um sujeito se constituindo. Nas sessões ao deixar a criança no escuro e em silêncio procurava introduzir a brincadeira primordial de desaparecer e aparecer para que os operadores de alternância pudessem criar um intervalo entre o que não existe e o que está prestes a existir. Algumas questões colocadas na experiência analítica de uma criança de 11 anos levando em consideração as especificidades da clínica das psicoses: como introduzir um jogo com alternância entre ausência e presença para quem tem sua posição subjetiva estruturada sem a inscrição da ausência? É possível uma análise com a analista do lado de fora da sala? O desdobramento de um jogo e a aposta que pode permitir algo novo surgir, frente às oscilações entre momentos de uma mãe totalmente presente, sem abertura para que o sujeito pudesse comparecer; e outros momentos de total ausência, sem intermediação das experiências vividas pela criança.

Palavras-chave: psicanálise, linguagem do jogo, criança, psicose.