
SÁBADO | 26 OUTUBRO
Autismo: é ou não é?
Os diagnósticos de TEA na infância e seus efeitos nas escolas e na clínica psicanalítica
Este trabalho parte da constatação do crescente número de pedidos por diagnósticos psiquiátricos vindo das famílias e das escolas, em especial o diagnóstico do “transtorno do espectro autista” (TEA), ao objetivo de interrogar qual função esses diagnósticos têm cumprido no campo da infância. Observa-se que a solicitação por um diagnóstico por parte da escola visa, por vezes, validar adaptações padronizadas, assim como a inclusão de novos recursos ou profissionais que se dediquem ao aluno. A leitura diagnóstica é diversa se originada da psiquiatria, da psicologia cognitivo-comportamental ou da psicanálise, tendo como consequência propostas distintas de tratamento, ainda que tenham como objetivo comum a inclusão da criança na escola. A psicanálise trabalha com a ideia de que uma criança, independente de seus entraves estruturais, precisa ser reconhecida em sua singularidade como condição para o seu educar, estando a educação sempre articulada a um desejo de saber próprio ao sujeito. Nesse sentido, técnicas que buscam a padronização de uma prática educativa para determinadas crianças – as autistas – ou, mais ainda, a entrada de práticas clínicas no território escolar, podem ter como efeito a perpetuação de situações discriminatórias e limitadoras para crianças que já as sofrem, diversas vezes, no campo social. Uma perspectiva em que o diagnóstico determina a priori as possibilidades de uma criança, pode desestimular investimentos familiares e escolares e predeterminar fracassos em sua vida afetiva, social, linguística e cognitiva (Rabelo, 2012). É importante ressaltar que os diagnósticos psiquiátricos atuais foram legitimados no mundo ocidental e globalizado em articulação ao regime econômico de racionalidade neoliberal que tem como paradigma o “homem competitivo” (Dardot e Laval, 2009). Nesse sentido, pode-se inferir que a base comparativa, “a criança modelo”, que serve de controle em relação às que teriam algum diagnóstico para justificar sua diferença e déficit é compatível a ideais de sucesso, presentes no discurso hegemônico, necessários à adaptação do indivíduo a esse mundo. Questiona-se aqui quais seriam as consequências se a escola e o lugar de tratamento, fundamentais à constituição do sujeito, obedecerem a tais imperativos por uma criança – futuro cidadão responsável pelo mundo – mais produtiva, apressada, adaptada e sem falhas. A ética psicanalítica sustenta uma forma de tratar o mal-estar e sofrimento, inerente à condição humana, de um sujeito autista, psicótico ou neurótico, a partir da criação de condições para que este possa bem dizer ou bem expressar sua forma de ser no mundo, incluído na cultura e, portanto, na escola. Parece interessante que as estratégias de inclusão possam partir da própria cultura afetiva, o saber da escola e o saber familiar, e não determinada por uma nosografia que, diversas vezes, objetifica um sujeito ainda em formação.
Palavras-chave: diagnóstico psiquiátrico, autismo, psicanálise, discurso hegemônico.
Lourdes Andrade, Maria Francisca Andrade Ferreira Lier-Devitto, Ana Carolina Athayde Carrer, Brenda Sousa, Luciana Branco Carnevale, Melina Fernandes Sanchez
A discussão a ser desenvolvida parte da questão enunciada e condensada no título escolhido: “crianças autistas brincam?”. Trata-se de uma indagação disparadora de um grupo de trabalho instaurado pelas autoras a partir da articulação entre o que vem sendo recolhido nos encontros com crianças autistas no contexto do Projeto Entrelaços/Derdic-PUCSP e as chaves de leitura oferecidas pela Psicanálise (Freud, Lacan, Winnicot). Essa articulação tem nos oferecido uma trilha a ser percorrida nessa apresentação a partir de acontecimentos clínicos e pontos de referência teóricos precisos. Explicitemos, na medida do possível. Quanto aos acontecimentos, partiremos dos seguintes pontos:
(1) o que dizem as mães das crianças na chegada ao atendimento: seus filhos (as) “não se interessam por brinquedos” e “só brincam com objetos da casa, como potes de cozinha, colheres, vassouras etc.”;
(2) crianças apegadas a um objeto específico dos quais não podem prescindir, o assim chamado “objeto autístico”;
(3) seus interesses e manifestações são predominantemente repetitivas e solitárias.
Esses acontecimentos, recolhidos na clínica e das falas das mães, serão lidos/discutidos/desdobrados a partir do seguinte percurso teórico:
(1) a reflexão de Freud sobre o jogo do carretel de seu neto (o fort-da) e sua relação com a alternância presença-ausência da mãe (1920);
(2) a retomada dessa interpretação por Lacan (1953) e seu deslocamento da marca de controle da criança sobre uma perda para a marca de ausência;
(3) a diferenciação entre o “objeto transicional” (Winnicot) e o “objeto autístico” catalisador de gozo;
(4) a afirmação de Di Ciaccia (2005) de que “crianças autistas não brincam”;
(5) a retomada e interrogação sobre essa afirmação de Di Ciaccia a partir dos efeitos da abordagem da Prática entre Vários, abordagem para o tratamento de crianças e jovens com impasses no estabelecimento de laços sociais instituída pelo próprio Antonio Di Ciaccia e assim nomeada por Jacques-Alain Miller (1986), anos após sua implementação na instituição belga Antenne 110. Esta prática tornou-se inspiração para várias outras instituições, como o Le Courtil, também na Bélgica e, muitos anos mais tarde e numa considerável distância geográfica e cultural, para o Projeto Entrelaços, lugar de uma práxis particular a partir da qual nos situamos para o encontro com essas crianças “fora do laço” e para o encontro com a Psicanálise. Ao final, desse percurso, retomaremos a questão com uma nova roupagem: “crianças autistas não brincam, ainda que diferentemente de crianças para quem o brincar esteja ancorado no campo do simbólico?”. Ou: “a noção do que é “brincar” pode ser estendida para incluir os modos absolutamente singulares de relação de crianças autistas com o Outro e os objetos”?
Palavras-chave: autismo, brincar, psicanálise, prática entre vários.
A constituição do psiquismo segundo Silvia Bleichmar e suas contribuições no debate sobre o autismo
São bem conhecidas as querelas existentes entre a psicanálise e os manuais descritivos dos transtornos mentais. Tal debate tem ganhado novos contornos a partir do crescente movimento de disseminação de informação nas redes sociais, tanto por aqueles que são impactados por alguma condição e compartilham suas experiências quanto por profissionais de saúde que visam aumentar a consciência social sobre certo problema. Entre os maiores e mais recentes booms diagnósticos direcionados a crianças, encontramos o transtorno de espectro autista. Entendemos que o debate atual trouxe inúmeros benefícios à população impactada pelo transtorno, tais como o ganho de direitos e maior compreensão dos desafios do autista por profissionais e pela população em geral. Entretanto, se faz necessária uma interrogação sobre as consequências da circulação de informações simplificadas acerca de sinais e sintomas de um transtorno de diagnóstico complexo e multidisciplinar, cuja etiologia parece localizar-se nas fronteiras de difícil localização entre o biológico e o intersubjetivo. Vemos com preocupação certo determinismo genético ganhando espaço, com mães convencidas de que seus bebês de meses já poderiam ser definitivamente diagnosticados como autistas. Visando um contraponto que nos permita acolher e intervir com estas crianças na clínica psicanalítica e evitando o risco de reproduzirmos um discurso que fomente identificações maciças e massificantes, buscamos neste trabalho o aporte metapsicológico de Silvia Bleichmar. A autora se propôs a renovar a clínica infantil a partir de um novo posicionamento diante dos impasses sobre o lugar da alteridade nas abordagens clássicas. Nessas, ora o outro adulto era um mero suporte de projeções oriundas de moções pulsionais inatas, ora era tão prioritário a ponto de se compreender as manifestações subjetivas da criança como reflexo do sintoma dos pais. Em “Nas origens do sujeito psíquico – do mito à história”, livro publicado em 1984 e oriundo de seu doutorado orientado por Jean Laplanche, Bleichmar se dedicou ao estudo da constituição psíquica, reconhecendo como eixo central o processo de instauração do recalcamento originário. Defendeu, assim, que a tópica psíquica precisa ser fundada a partir do contato com a alteridade, e que esta fundação é condição fundamental para o desenvolvimento da linguagem e do vínculo com o outro – pontos tão explorados nas descrições atuais sobre o autismo. Buscamos resgatar, com a autora, o autismo como um conjunto de fenômenos psíquicos compreensíveis dentro das origens de um sujeito. Tentaremos apontar como sua contribuição teórica e clínica nos permite uma posição fecunda diante do cenário atual, pois a direção indicada por ela nos afasta de um reducionismo biológico tanto quanto de uma culpabilização materna enrijecida que esteve presente nas primeiras teorizações psicanalíticas sobre o tema.
Palavras-chave: autismo, recalcamento originário, diagnóstico, alteridades