
SÁBADO | 26 OUTUBRO
Danielle Pereira Matos Rabelo e Cassandra Pereira França
Sabemos que abusos sexuais ocorrem em lares de todas as classes sociais. Mas quando tratamos desses casos em famílias vulneráveis, para terem seus direitos garantidos, muitas crianças se submetem a outras tantas violências e privações, incluindo o afastamento de suas casas, até que elas possam ser reintegradas a um convívio familiar, seja com a família de origem ou, em alguns casos, em lares adotivos. Entretanto, antes mesmo da denúncia do abuso, grande parte delas já vivia em ambientes insalubres e negligentes, distantes do que Winnicott descreveu como sinônimo de um “lar”. Ou seja, elas não recebiam um suprimento ambiental suficientemente bom, necessário para um ser em amadurecimento. O presente estudo, portanto, pretende destacar o modo como essas deprivações, abandonos afetivos e negligências, associadas ao traumatismo sexual, impactam significativamente no amadurecimento de um indivíduo. Para tanto, partindo de nossa experiência como supervisora clínica de um projeto de pesquisa e extensão que atende crianças vítimas de violência sexual, tomaremos para reflexão o caso de uma criança de dez anos que vivia em uma instituição de acolhimento desde os cinco anos, quando sofreu abuso e demais violências por parte da família de origem. Tal criança apresentava condutas que se assemelham ao quadro de tendência antissocial, assim como descrito por Winnicott, além de, com frequência, abordar sexualmente e de forma violenta outras crianças da instituição em que vivia, provocando inúmeros transtornos em seus espaços de convivência. Ressaltamos que, a grande tarefa analítica, nesses casos, é de auxiliar aquela criança a encontrar palavras diante de experiências indizíveis, elaborar, através da relação de confiança, as falhas primordiais nas relações de confiança, talvez a mais dura de todas as ruínas ambientais que sofrera. Entendemos que, através de seu olhar, de sua fala expressiva, de sua presença corpórea, o analista poderá contribuir para que se construam redes simbólicas diante do traumatismo sexual vivenciado, ao ofertar um ambiente seguro e sobreviver aos ataques destrutivos desses pacientes, que costumam ser desafiadores à ambivalência do próprio analista na contratransferência. Para isso, compreendemos ser preciso que o analista também cuide, continuamente, de sua própria “casa interna”, a fim de que possa manter viva a sua capacidade de conter as projeções de seus pacientes e estabelecer o espaço para o brincar, segurando os sopros de esperança que ainda restaram nessas crianças que, legitimamente, clamam: “eu quero a minha casa”.
Palavras-chave: deprivação, traumatismo sexual, infância, manejo clínico.
A violência do Estado e suas implicações nos atendimentos psicanalíticos de crianças separadas de suas famílias:uma análise a partir dos Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Juliana Devito e Marcia Regina Porto Ferreira
Este trabalho aborda os desafios e implicações do atendimento psicanalítico a crianças separadas de suas famílias de origem, acolhidas ou adotadas. Focaliza-se na violência institucional praticada pelo Estado, resultando na retirada dessas crianças do convívio familiar, e como essa questão pode ser negligenciada na escuta e nas intervenções clínicas. A partir de uma publicação recente dos Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (2023), intitulada “Direito das Mulheres I Caderno Temático Famílias vulnerabilizadas, maternidades negadas: a violência do Estado na Destituição, Roubo, Sequestro e Retirada compulsória de crianças”, o caderno explora a continuidade da prática colonial do Estado e os efeitos dessas ações na vida das crianças e suas famílias. Utilizando o conceito de interseccionalidade, destaca-se que as crianças acolhidas são majoritariamente negras e economicamente desfavorecidas, e que diferentes formas de opressão (raça, gênero, classe social e orientação sexual) se sobrepõem, contribuindo para a continuidade do ciclo recursivo de vulnerabilização dessas populações. A publicação questiona o uso do termo “vulnerabilidade”, propondo “vulnerabilizados” para evidenciar as práticas perversas da sociabilidade capitalista. Essas questões nos lembram da importância de abandonar termos pejorativos como “menor”, que perpetuam retraumatizações, e ressalta a necessidade de uma abordagem psicanalítica que não colabore com silenciamentos e sujeições. A crítica à retirada compulsória de bebês de mulheres negras e pobres e ao mito do amor materno é destacada, evidenciando a necessidade de um olhar crítico e sensível. Conclui-se que o atendimento psicanalítico a crianças acolhidas ou adotadas deve reconhecer e abordar a violência institucional e os impactos das políticas estatais que perpetuam desigualdades estruturais. Esse reconhecimento é essencial para uma prática psicanalítica ética e eficaz, que visa desmistificar soluções generalizadas e atender às especificidades de cada caso.
Palavras-chave: violência estatal, separação familiar, psicanálise com crianças, decolonização.
Cuidando de crianças traumatizadas numa OSC dedicada a vítimas de violência intrafamiliar: reflexões winnicottianas
Miriam Tachibana, Guilherme Antonio Vieira Monteiro, Lara Oliveira Soares, Luiza de Moura Castro, Melissa Teixeira da Cunha
Embora Winnicott não tenha focalizado na violência intrafamiliar, discorrendo mais sobre os traumas sutis que o bebê pode experienciar mediante falhas ambientais, podemos fazer uso de suas contribuições teóricas para refletir sobre os traumas grosseiros que a criança pode experienciar ao estar inserida em um ambiente familiar violento. Assim, com o objetivo de apresentar reflexões winnicottianas sobre a criança vítima de violência intrafamiliar, relatamos nossa experiência clínica numa Organização da Sociedade Civil (OSC) do interior de Minas Gerais, dedicada a famílias em situação de violência. Desde 2016 vêm sendo prestado atendimentos psicológicos, psicanaliticamente orientados, a crianças e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar. No presente trabalho, faremos um recorte considerando apenas os casos atendidos em 2024, que, em sua maioria, correspondem a crianças do sexo feminino, com a idade média de 10 anos, de baixo nível sócioeconômico e vítimas de violência física, sexual, patrimonial e psicológica. Embora Winnicott tenha discorrido sobre a importância do brincar, independentemente do contexto em que a criança está inserida, observamos que, nos casos de crianças vítimas de violência intrafamiliar, essa premissa fica maximizada, com o brincar de guerra, por exemplo, tornando-se um meio protegido delas expressarem as angústias frente os processos judiciais envolvendo seus genitores. Em alguns casos, temos crianças atravessadas por ideações suicidas, que nos sinalizam que, mais do que conversar sobre a destrutividade que as assola, precisam que brinquemos criativamente com elas, constituindo com elas sessões-refúgios, aos moldes do espaço potencial, das quais elas possam sair mais vitalizadas. Tratam-se, assim, de crianças que, em função da experiência traumática vivida, nos revelam que o holding por parte do analista se torna prioritário às interpretações verbais; caso contrário, há o risco de se sentirem revitimizadas. Destacamos ainda os casos de crianças que, num avesso dessas que anseiam por intervenções lúdicas, apresentam-se, nos atendimentos, com um brincar mais hesitante e empobrecido. São crianças que, ao invés de brincar, se dedicam mais a organizar a brincadeira e, quando brincam, encenam ludicamente que são as provedoras responsáveis. Entendemos que esse segundo grupo de crianças revela que, por vezes, a experiência traumática é tão devastadora que se faz necessário que amadureçam precocemente, submetendo seu verdadeiro self a um falso self que as proteja das repetitivas invasões ambientais. Em suma, vemos diferentes nuances do trauma em crianças vítimas de violência intrafamiliar, expressos a partir do brincar. Entendemos, também, a importância de ampliarmos o cuidado às mulheres-mães, que são as principais responsáveis em levar as crianças aos atendimentos, dada a compreensão de que elas também se encontram fragilizadas e demandando holding para que possam fazer os mesmos em relação aos seus filhos.
Palavras-chave: trauma, violência intrafamiliar, família, Winnicott.