SÁBADO | 26 OUTUBRO

MESA 16

Sustentar Infâncias: crises psíquicas e suas dimensões sócio-políticas

Adela Judith Stoppel de Gueller, Luciana Pires, Renata Lauretti Guarido, Barbara Cristina Mello, Diego Fontana Siqueira Cunha, Janaina Lopes Diogo, Julia Hatakeyama Joia, Marina da Silva Rodrigues, Priscyla Mamy Okuyama, Sthefânia K. Restiffe de Carvalho e Maíra Terra Cunha Di Sarno

Esse trabalho pretende apresentar vinhetas clínicas discutidas no Sustentar, grupo de supervisão e pesquisa do Departamento de Psicanálise com crianças do Sedes. Tais vinhetas foram escolhidas por apresentarem alguns pontos em comum: crise na infância, rede de sustentação, medicalização e ética da psicanálise. Trata-se da experiência clínica com crianças em situação de crise, que mobilizam uma rede de sustentação e cuidados, inclusive o próprio Sustentar, um grupo de trabalho em torno das intersecções entre os campos da psicanálise, das infâncias e da saúde pública. O coletivo propõe um espaço de reflexão e elaboração acerca do cuidado em saúde mental a crianças e adolescentes, construindo, dessa forma, uma sustentação para o trabalho clínico com crianças acompanhadas na rede pública. O trabalho em rede é um pressuposto do cuidado em saúde mental no SUS. Os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como UBS, CAPS, SRT, UA e CECCO, devem se articular nas diversas ofertas a serem propostas aos usuários e a seus familiares, não somente dentro da rede de saúde, mas com os serviços que compõem a rede intersecretarial. No que tange à garantia de direitos, os equipamentos mais acionados na atenção a crianças e adolescentes são os da Saúde, Educação e Assistência. Têm sido relevantes as diversas discussões entre os trabalhadores dos serviços de saúde mental (em especial dos Centros de Atenção Psicossocial infantojuvenil – CAPS ij) com os dos Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (SAICAs). Muitos trabalhadores dos SAICAs questionam a saúde mental a respeito de como manejar crianças e adolescentes, dentro das casas, diante das manifestações de intenso sofrimento psíquico e situações disruptivas. Por outro lado, trabalhadores da rede de saúde mental do SUS questionam as inúmeras demandas vindas dos SAICAs de prescrições de fármacos, laudos com diagnósticos e pedidos de internações. Ambos têm em comum o desafio de ofertar o melhor cuidado a crianças e adolescentes que têm seus laços rompidos com as famílias de origem, seu território e conexões com a vida. A saúde mental paulistana atualmente conta com o CAPS ij III, um serviço de atenção que oferta cuidado contínuo para situações de maior intensificação do sofrimento psíquico, crises ou outras situações que necessitem de um afastamento temporário do local de moradia e convivência. Este serviço tem sido muito acionado pela rede de saúde mental e pelos SAICAS, não somente pelos profissionais, mas pelos próprios usuários, crianças e adolescentes solicitando a ida para um CAPS ij III. O que isto significa? É sobre isto que gostaríamos de discutir no Colóquio. A partir de algumas vinhetas clínicas de crianças atendidas nos CAPS ij, que estão acolhidas nos SAICAS do município de São Paulo, considerar alguns pontos: relação entre os serviços CAPS ij e SAICA; crise em saúde mental infantil e medicalização.

Palavras-chave: crises na infância, rede de sustentação, CAPS infantojuvenil, medicalização.

Crianças que lutam contra monstros”: a experiência do brincar em saraus de um território periférico da cidade de Londrina/PR

Rafaella Massuia Vaz e Julia Carriel de Paula

Este trabalho busca refletir sobre o brincar de crianças em um território periférico na zona oeste da cidade de Londrina/PR. As análises partem de nossas experiências enquanto psicólogas em um coletivo independente chamado Ciranda da Cultura o qual sedia e organiza Saraus destinados às crianças, além de outras atividades voltadas à população local. Para tanto, colocamos em interlocução os campos da psicanálise e da antropologia da criança, áreas marcadas por questionamentos e tensões quanto ao modo como podemos estabelecer contato com o outro e lidar com a alteridade. Trazemos a antropologia da criança, pois produções nesse campo nos auxiliam a pensar o mundo infantil a partir de seus próprios termos e não através de uma lente dicotômica com o mundo adulto que o coloca, por vezes, em lugar de “Outro”. Assim, concordamos com a perspectiva de que crianças não são meras criaturas “em desenvolvimento” e/ou reprodutoras de lógicas adultocêntricas, mas sujeitos sociais ativos e plenos de agência. Para além disso, entendemos que apesar de infância ser uma experiência global, ela não é universal. Desse modo, infâncias devem ser entendidas no plural e de maneira interseccional, entendendo as implicações dos marcadores sociais da diferença nessas experiências. A partir disso, esse trabalho analisa uma noção de infância específica e localizada que surge a partir de uma certa sociabilidade: os Saraus. Nesses espaços, articula-se noções de coletividade, do encontro singular com o outro, em que reconhecendo as assimetrias nas relações busca-se uma relação dialógica nas diferenças e o reconhecimento de que todos têm voz e podem expressá-la. A partir desses dois campos, analisamos a maneira como as crianças “ocupam” os Saraus através e com suas brincadeiras, e os efeitos em suas vidas social e subjetiva. Consideramos que suas experiências e produções reposicionam seus lugares enquanto sujeitos da e na história, ou seja, através do brincar significam, criam e reformulam vivências, regras, valores e normas sociais. Portanto, apesar de sofrerem discursos e práticas violentos, sejam vindos dos campos médico, familiar, escolar, não são completamente dominadas por eles. Assim, concluímos que a partir da oferta de um espaço e ambiente específicos, crianças através do brincar aparecem como agentes e que a brincadeira se mistura com o movimento de politização da vida e do território.

Palavras-chave: infâncias, saraus, brincar, agência.

Cicatrizes de Maria: uma criança ribeirinha sem Rio
Vivian Karina da Silva

No ano de 2017 foi realizada uma expedição em saúde mental para Amazônia com uma equipe de psicólogos e psicanalistas chamada Clínica do Cuidado por meio do Projeto Refugiados de Belo Monte. Esse projeto foi idealizado pela jornalista Eliane Brum com parceria do Departamento de Psicanálise e Teoria Social da USP. O objetivo foi realizar atendimentos na cidade de Altamira/PA às voltas do rio Xingu, com a população ribeirinha que foi expulsa de suas ilhas/casas pela construção da Usina de Belo Monte, configurando uma intensa forma de sofrimento sociopolítico-territorial e violação de direitos humanos dessa população. O processo de expulsão das comunidades das suas ilhas para os RUCs (reassentamentos urbanos) pela Norte Energia rompeu os laços de vizinhança que são a base do modo de viver ribeirinho e uma alteração brusca de território, configurando grande vulnerabilidade social e sofrimento psíquico. Os atendimentos foram orientados pela psicanálise por meio de um dispositivo de escuta enquanto cuidado e testemunho das experiências de violência territoriais que a comunidade ribeirinha foi submetida. Dentre os vários atendimentos realizados pela equipe, relato o caso Maria, uma criança de dez anos de idade, ribeirinha do Xingu (o nome fictício para resguardar a identidade da criança). Essa mudança radical trouxe uma imposição de uma nova forma de viver e um evento trágico na vida de Maria e por não saber “andar na rua” como ela dizia, pois ali não era sua ilha – foi atropelada, nesse bairro que era distante demais do rio onde adorava mergulhar, correr e brincar, numa vila distante demais dos laços fraternos que ela perdeu. A narrativa de Maria sobre sua vida antes da expulsão, sua vida após a mudança e o relato detalhado da experiência de ter sofrido esse acidente e quase a perda de uma das pernas, nos convoca ao testemunho das cicatrizes de uma criança que teve seus direitos violados. No percurso da escuta, Maria foi nomeando por meio de desenhos as histórias que foram formando os sintomas – a vergonha pela cicatriz na perna, não conseguir mais andar de vestido e bermuda, o isolamento em não sair mais para brincar na rua, ter receio de ir à escola, medo de ser atropelada de novo, dificuldades em estabelecer novos laços de amizade. Desenhou o rio e contou sobre a vida na ilha, as brincadeiras, a alegria e a liberdade de transitar sem medo. Desenhou a cidade, ruas e carros e contou sobre o atropelamento – “numa piscada de olhar” andando na rua, viu sua perna se dividir ao meio. Desenhou chuva e trovoada dizendo como sentia tristeza, raiva e ódio e algumas vezes vontade de não viver mais. Desenhou vestidos, me convidou para conhecer os seus e então os vestiu – e caminhamos juntas, com as pernas à mostra nas ruas do RUC – brincantes – essa aposta subversiva do brincar enquanto um direito de ser/existir criança em meio a tantas marcas e cicatrizes.

Palavras-chave: território, brincar, sofrimento sociopolítico.