SÁBADO | 26 OUTUBRO

MESA 19

O YouTube e a realidade: psicanálise com crianças e impasses contemporâneos

Camila Deneno Perez

Este trabalho parte das primeiras consultas com os pais e uma menina de 6 anos. Os pais de Bia, como vou chamá-la, me procuraram bastante preocupados com a filha: não tinha amigos, não se relacionava com outras crianças e ficava horas sozinha em seu quarto assistindo a vídeos no YouTube e jogando no celular. No contato com professores e familiares, imitava o que ouvia nesses vídeos, de forma confusa e descontextualizada. Como estávamos no auge da pandemia de Covid-19, ainda sem vacina, a opção era atendê-los via Zoom. Não tendo outro jeito, aceitei o desafio, consciente do que poderia soar como ironia: começaríamos uma análise on-line para tratar do excesso de telas? Depois da primeira conversa com os pais, propus uma sessão com a família: eu, de um lado do computador, Bia e seus pais, do outro lado. No dia e horário marcados, ligamos as câmeras e me apresentei à Bia, que reagiu imediatamente dizendo: ‘olá, estamos aqui no nosso canal, clique para se inscrever.’ Falava jogando o corpo de um lado para o outro, e fui ficando cada vez mais angustiada com o modo como agia: era como se falasse comigo, mas, quando vinha resposta, se mostrava inacessível, assim como em uma gravação de YouTube, onde não há interação real. Quando eu falava com ela, tentando participar da espécie de vídeo que encenava ali, me ignorava, e aos pais também. Em dado momento desta consulta, Bia e eu conseguimos nos encontrar. Após longos vinte minutos, Bia respondeu a uma intervenção minha, propondo uma brincadeira. Mas, na mesma hora, e de forma abrupta, o pai atravessou a cena desmontando qualquer possiblidade do faz-de-conta incipiente. Foi ficando claro que, entre a identificação mimética com figuras do YouTube e a invasão de realidade, Bia não conseguia brincar. O processo analítico com a família seguiu por anos, mas meu objetivo aqui é aprofundar nesse início, pensando no trabalho de um(a) psicanalista diante dos desafios da clínica com crianças. Quem é o paciente? Quais as estratégias e enquadres possíveis? Como construir e assegurar à criança um campo brincante quando este se encontra ausente ou fortemente ameaçado? Como fazer isso na modalidade on-line? O título do trabalho faz analogia à famosa obra “O brincar e a realidade”, de Donald Winnicott, que nos ajudará no embasamento teórico-clínico. Como diz o autor, é a possibilidade de acolher paradoxos o que viabiliza a instalação de uma área intermediária, entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido; ou, se quisermos brincar com o tema dos eletrônicos, de um “software psíquico” que nos permite sonhar, imaginar e criar mundos, sem perder o contato com a realidade.

Palavras-chave: telas, clínica, brincar, Winnicott.

Brincar Submisso ou Subvertido

Claudia Del Corto e Caroline Marques

As crianças não chegam a este mundo para brincar de viver. Para elas, brincar é viver.”Maria Amélia Pinho, Peo, da Casa Redonda. O cenário atual nos coloca em xeque. As crianças chegam para os atendimentos clínicos impedidas e inibidas em seu brincar. O espontâneo desaparece e, na cena, encontramos a mimetização e a impossibilidade de criar. Para tal reflexão, trazemos recortes de vivências clínicas que procuram resgatar a possibilidade do brincar espontâneo, por meio das contribuições do pediatra e psicanalista D. W. Winnicott.Ao conquistar o brincar nos atendimentos, nos deparamos com um grande desafio: a necessidade de sustentar e manter esses aspectos nos demais contextos da vida, familiar e escolar. A complexidade maior se dá diante de uma sociedade que não valoriza os processos, a criação e a apropriação pessoal.Por meio de algumas vinhetas clínicas de casos vividos por nós, fazemos um convite para questionar a concepção do brincar presente e o lugar que ele ocupa nos respectivos contextos. Luidi, que chega à clínica muito bonzinho, pede Lego e manual. Helena mexe em todos os brinquedos, faz montinhos e os chuta. Nina, agora com seus seis anos, quer sempre fazer algo sem saber de fato o quê; não gosta de perder tempo brincando, quer somente produzir desenhos e jogos intelectuais. Luidi, Helena, Nina e tantos outros estão brincando de fato?No contexto clínico, o terapeuta desempenha um papel fundamental na criação de um ambiente suficientemente bom, possibilitando à criança resgatar e desenvolver sua capacidade de brincar. Esse processo possibilita à criança dar continuidade a seu viver e participar de forma mais plena de sua vida.Utilizamos um trecho da letra da música ”João e Maria” de Chico Buarque que nos indica a possibilidade de perdermos o encanto da infância se nada fizermos:” Agora era fatal Que o faz-de-conta terminasse assim Pra lá deste quintal Era uma noite que não tem mais fim Pois você sumiu no mundo sem me avisar E agora eu era um louco a perguntar O que é que a vida vai fazer de mim?” Diante dos desafios institucionais propomos refletir sobre os desafios de manter o brincar espontâneo em ambientes, como escolas e famílias, identificando práticas que podem tolher essa possibilidade e propor novos caminhos para transformar esses ambientes em espaços que sustentem o brincar livre e criativo. Se o brincar subverte a lógica de desempenho contemporâneo, é necessário, no âmbito do tratamento e prevenção, transformar os olhares diante nos ambientes que roubam a espontaneidade e o vivo com seus excessos intrusivos no desenvolvimento infantil.

Palavras-chave: Winnicott, inibição, criatividade, brincar.

Por uma prática psicanalítica contracolonial no campo da parentalidade

Lia Pitliuk

A noção de colonização – da infância, em nosso foco – implica em vínculos de dominação e submetimento das mais variadas naturezas e âmbitos, do mais íntimo e familiar ao mais amplo e coletivo. A relação colonial implica a pretensão de supremacia do colonizador, desqualificando, anulando e destruindo o que seria próprio daquele que, nesse processo, passa a colonizado, e isto se dá por formas muito variadas de violência: de ameaças ou agressões explícitas, passando por desconsideração e silenciamento, até manipulações das mais diversas ordens. A razão neoliberal, apoiada em critérios de adaptação e de eficiência, penetra na mídia, nas políticas estatais, nas políticas de administração da vida cotidiana de grupos e de indivíduos, orquestrando mecanismos de convencimento, de vigilância e de julgamento que bem merecem a qualificação de coloniais, colonialistas ou colonizadores. No que tange às crianças, no entrecruzamento dos fios que compõem as problemáticas em jogo estão os pais, estão as relações entre pais e filhos, estão os lugares e formas da parentalidade em nosso universo sociocultural. Em funções formadoras, facilitadoras e protetoras, os pais vivem os atravessamentos, os questionamentos e desafios de estarem, também eles, capturados em muitas das armadilhas que enredam seus filhos e submetidos – também eles – a desqualificações das suas experiências e recursos enquanto pais. Por outro lado, a assimetria entre pais e filhos, garantidora de lugares e de prerrogativas, há décadas vem sendo crescentemente abalada por zonas de ambiguidade que promovem sentimentos profundos de desamparo e/ou enrijecimento de defesas que muitas vezes produzem climas familiares irrespiráveis e, certamente, muito adoecedores. Nesse panorama, onde e como o psicanalista se localiza? Nas muitas situações em que se vê lidando com as questões pais-filhos, que recursos sustentam a intervenção psicanalítica, dos pontos de vista ético e clínico? Articulando elementos do pensamento de Donald Winnicott, Christopher Bollas e Ricardo Rodulfo, este trabalho aponta uma direção para uma prática clínica contracolonial no campo da parentalidade.

Palavras-chave: parentalidade, ética, Winnicott, Bollas