E se mamãe tiver pênis? Por uma psicanálise mais bagunçada[1]
Luísa Helena de Moraes Godoy[2]
Zero
A gente fica mordido, não fica?
Dente, lábio, teu jeito de olhar
Me lembro do beijo em teu pescoço
Do meu toque grosso
Com medo de te transpassar e transpassei
Peguei até o que era mais normal de nós
E coube tudo na malinha de mão do meu coração
Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você
Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você
Deixa eu bagunçar você, deixa
eu bagunçar você
Deixa eu bagunçar você
(Liniker e os Caramelows, 2016)
Começo a escrever inspirada pela música Zero, do primeiro álbum de Liniker e os Caramelows – antes, inclusive, do início de sua carreira solo. Ouvi essa música pela primeira vez há muitos anos, era 2017, em um documentário chamado Liberdade de gênero. Ali eram contadas diversas histórias de pessoas trans, travestis e não bináries, inclusive a de Liniker. A música Zero era a abertura, carregando consigo um convite: deixa eu bagunçar você.
Bagunçada, escutava a letra da música e sentia uma espécie de arrepio, que percorria meu corpo. Como que me contornando. As histórias que vinham a seguir me atravessaram, transpassaram de maneira permanente. Foi um marco do início da minha transição. E é curioso como a música fala um pouco disso, não? Do encontro que atravessa, do toque que transpassa – do outro que deixa marca. Da bagunça que o encontro com o outro nos causa e nos deixa. E como levamos um pouco do outro conosco – na malinha de mão do nosso coração.
Desde que nasce, o bebê é olhado, cuidado, tocado. Vai se constituindo à medida em que um outro o enxerga, alimenta, limpa. Vai se constituindo em uma costura afetiva que funda as primeiras marcas do psiquismo. A partir daí, do que resta do outro em nós, é possível sermos. De maneira simplificada, é assim que a psicanálise versa sobre o surgimento do sujeito no contato com o outro. O outro possibilita, mas também faz trabalhar, na medida em que deixa um resto de si em nós – um resto que precisa ser elaborado, encaminhado, incorporado no nosso Eu. De alguma maneira, podemos pensar que outro nos ampara nesse desenvolvimento, mas também bagunça.
A maneira de organizar essa bagunça pulsional é o que me interessa neste texto. Olhar para a maneira como a teoria psicanalítica vem se colocando enquanto discurso e prática, mais ou menos aberta a pensar subjetividades que vão além do que se considera universal. Como trabalharei mais à frente, o caminho da metapsicologia vem se construindo como positivador de uma maneira de ser e de se constituir, associada a marcadores e códigos sociais que sustentam o sistema patriarcal e racista em que nos vemos.
Parto, portanto, do desconforto que vem sendo gerado pelo contato com a transmissão da teoria psicanalítica. Parto da surpresa, também, diante da dificuldade de encontrar textos que versem metapsicologicamente acerca das experiências não cis-heterenormativas no contexto da sexuação, fora da associação à patologia, ao desvio. E, aqui, meu foco será nas transidentidades.
Muitos são os trabalhos com que me deparei que trazem a questão da transexualidade associada a uma recusa à castração e/ou uma resolução em aberta do Édipo – como também se pudéssemos pensar em um Édipo tão fechado em termos de resolução, excluindo toda a trama viva de identificações que seguem se dando e enredando no decorrer também da vida adulta.
Outros muitos textos buscam na obra freudiana uma abertura para outras formas de subjetivação que escapem a uma lógica binária apoiada em um falocentrismo dado. São tentativas importantes, mas que podemos pensar que ainda reforçam uma lógica cisgênera que no máximo possibilita um deslizamento para uma associação mais possível entre vagina e posições ativas, ou entre presença de pênis e sujeito castrado.
Dessa maneira, surge em mim o desejo de trabalhar metapsicologicamente as possibilidades de sexuação e de constituição das subjetividades que escapem à lógica fálica e binária, herdeira de um cis-tema de sexo/gênero e raça construído socialmente. Entretanto, isso é apenas um desejo, e que foi se colocando como um imenso desafio para mim. Tantos textos que circulam, elaboram, deslizam e deslocam pontos importantes da teoria como o conceito de falo, o paradigma da diferença sexual, a percepção da alteridade calcada no órgão e a questão em torno da castração e do complexo de Édipo estruturante. Tantos textos que, apesar da importante contribuição, não alcançam uma proposição de abandono de certos termos e entendimentos. Enquanto isso, ao meu ver, as experiências trans e travestis continuam – elas sim – foracluídas dos escritos clínicos e da metapsicologia.
Ainda assim, diante desse desejo, me proponho a percorrer alguns destes textos, fazendo um movimento semelhante, do qual não pude escapar. Farei apenas uma tentativa de construir um raciocínio que acompanha o processo de sexuação e retira dele mesmo a possibilidade de repensar. Que boas bagunças as transidentidades não podem trazer à psicanálise?
Gênero e subjetivação
Para situar quem lê na problemática que estou trazendo, vale revisitar a ideia do que é o processo de formação subjetiva para a psicanálise, e onde o gênero entra nisso. Para tanto, invocarei os conceitos de castração e de complexo de Édipo. Conceitos importantes na teoria psicanalítica que dão contorno à própria ideia de sexualidade. Mais que isso, são conceitos que falam de momentos importantes na subjetivação de cada um de nós.
O bebê humano chega ao mundo inteiramente dependente de um outro. De alguém que o alimente, de alguém que o limpe, de alguém que o mantenha vivo. A partir dessa relação, nos constituímos, como disse mais acima, como sujeitos. A partir dessa relação surge o que conhecemos como um Eu. Também não totalmente conhecido, esse Eu é, ainda assim, um importante contorno conquistado pelo sujeito, na medida em que há aqui uma separação do que sou eu e do é o outro.
No entanto, não foi desde sempre que pudemos ter essa percepção. Nascemos um tanto confundidos com o ambiente que nos cerca. O cuidado que recebemos, o toque que chega à nossa pele, chega com um tanto de excitação. Partes do nosso corpo são excitadas enquanto cuidadas. A boca que mama é o disparador desse processo em que aquilo que coincide com funções muito biológicas nossas ganha outra significação e experimenta algo a mais do que o que era essencial. O bebê mama porque precisa se alimentar, mas logo buscará o seio para além dessa necessidade, achando ali um encontro que traz mais além do alimento, traz prazer. Vai se implantando um circuito pulsional, marcas desse encontro. A isso chamamos sexualidade em psicanálise, ou aqui, sexualidade infantil. Nas palavras de Ana Maria Sigal, em seus Escritos clínicos e metapsicológicos:
(…) o sexual em Freud não pode ser reduzido ao genital. Temos a oralidade e a analidade que também correspondem à sexualidade. A grande descoberta freudiana está no reconhecimento de que sobre as funções orgânicas há um plus de prazer, irredutível à satisfação da necessidade. (SIGAL, 2009, p. 29)
É nesse contexto que a criança, implantada de sexualidade, vai percorrendo um caminho de significar essa excitação, dar encaminhamentos a ela. Se não há o seio, há a busca no dedo por algo que faça as vezes. Esse é um caminho de elaboração que vai trazer para o campo o corpo da criança. Corpo que come, faz cocô, que chora e dorme; mas que, ao longo do tempo, deseja, busca fora de si o que não é mais ofertado. Desmame, desfralde – processos comumente conhecidos – marcam essa caminhada; são passagens que vão distanciando a criança daquela figura tão primária e necessária.
A sexualidade se faz, portanto, em relação. Instaura-se uma pesquisa do próprio corpo e daquilo que restou do contato com aquela figura cuidadora. O autoerotismo acompanha a criança nessa pesquisa daquilo que sobrou, enquanto ela vai achando no próprio corpo caminhos possíveis de elaboração e de encontro. Do próprio corpo, em algum momento, a criança irá em direção ao mundo, ao que está fora dessa relação primária, e que aí ela encontrará a alteridade – uma gama de interdições à essa relação que aparentava ser suficiente, na qual a criança via-se como total, altamente valorosa nos olhos que quem a cuidou. Até aqui, entendia-se ser tudo também para essas figuras, mas a realidade impõe limites e traz a realização de que há, para essa figura, algo além.
A esse processo de percepção da alteridade costura-se o que chamamos castração. É a percepção que não somos únicos, há o aspecto da diferença – há outras além de mim e, no desenvolver da metapsicologia, essa percepção está calcada no reconhecimento da diferença sexual. A percepção de que não há apenas um órgão genital. Seria, para além do reconhecimento da diferença, a assunção que uns têm, outros não. Ainda distante da associação disso com homem ou mulher, a criança diferencia, no entanto, fálicos de castrados.
Ana, em seus escritos referidos acima, revisita o texto freudiano de 1923, “A organização genital infantil” e desenvolve a partir dele a ideia do complexo de Édipo em relação à castração e sua importância na constituição do psiquismo e na organização da sexualidade infantil. Para a autora, a partir de 1923, a sexualidade fica menos atrelada ao biológico enquanto condicionante da percepção da alteridade, e traz a importância do outro no percurso de cada um – que chaves tradutivas o ambiente que cerca a criança pode oferecer.
Apesar da abertura, ainda vemos em Freud, segundo Ana, o problema em que a criança supõe que onde não há pênis, ou houve ou ainda haverá. Essa é a hipótese infantil, mas que ainda carrega uma ideia da castração que impediria a possibilidade de consideração das alteridades em um sentido positivado. A criança se confronta com a diferença, ou ainda, com a ausência do pênis em algumas, dando-se conta de que existem diferentes. A ideia de que algo se perdeu ou ainda virá a ser perdido é a própria recusa à castração, é a própria impossibilidade de consideração da alteridade – fica marcada a diferença, em lugar da diversidade. Nesse momento de consideração, Freud estaria assumindo um percurso universal encabeçado por uma figura universal, protagonista de uma história única: o menino. Elaborando a ideia do falo como organizador, “Freud assimila o genérico humano ao masculino” (p. 41).
Ana faz interessantes observações ao nos alertar da possibilidade da confusão do pênis com o falo, própria da fase em que a criança se dá conta da diferença sexual, e a permanência dessa associação seria própria da neurose. Ainda assim, entendo que a problemática que a autora vai colocando acompanha a ideia da suposição, ou produção, de uma universalidade. Coincide na visão infantil, na neurose adulta e nos restos da teoria essa confusão, ao meu ver. Algo do que se lê, ao se tornar teoria, também se cria enquanto realidade.
Ademais, a grande abertura que Ana vai nos trazendo é a marcação do caminho rumo a uma sexualidade adulta totalmente amalgamada na intersubjetividade, totalmente associada a um outro. Será esse outro que fará a leitura do sexo anatômico e das características sexuais secundárias segundo seus fantasmas, nos diz a autora, “colocando a criança em determinados lugares a partir dos quais ela significa, e com os quais se identifica ou dos quais foge no percurso de sua busca desejante.” (p. 36).
Ficamos, portanto, de Freud à Liniker, passando por Ana Sigal, com a importância do outro na nossa constituição, e do que se coloca enquanto necessidade de tradução e como isso pode ser feito. Daqui, chamarei para a conversa outro importante autor nessa discussão. Jean Laplanche, em sua consideração sobre o sexual, nos traz também a ideia de um Édipo relacionado à castração, mas além disso, um Édipo que parte do adulto e de sua sexualidade e que versa sobre a necessidade da criança de traduzir esse resto deixado pelo cuidador. Para o autor:
“(…) um infans desprovido de pulsões sexuais, com um adulto, que abriga em si mesmo não somente sua experiência sexual madura, mas também os restos mais ou menos bem integrados (…) de sua sexualidade infantil.” (LAPLANCHE, Sexual – 2000-2006, p. 284)
Em consonância com o dizer de Sigal, fica então uma necessidade da criança de significar esses restos deixados pelo adulto. Aqui se dará uma passagem importante da constituição psíquica e é onde entrará também a questão de gênero. Parte desse resto, condensado por Laplanche em mensagens enigmáticas, diz respeito à excitação sexual disparada pelos cuidados primários – aquela que afirmei se dar pelo toque que transpassa-, e parte dirá respeito à atribuição de gênero. Desde o nome que recebemos, o gênero que nos designam ao nascer. Mensagens bastante incipientes, inconscientes, deixadas pelo adulto que, no momento da leitura da diferença e da alteridade pela criança, será significada. Lembramos aqui da importância da diferença sexual nesse sentido, é onde Freud se apoiará para o que correrá de maneira como: eu sou, eu sou homem, ou eu sou mulher.
Ao tratar da castração, desse momento de percepção da alteridade, Laplanche ressalta se referir à percepção da diferença anatômica entre os sexos e de outro lado a atribuição dessa diferença a um corte, resultante de um conflito. Laplanche sublinha, ainda, essa diferença como anatômica, e não fisiológica ou biológica. Algo que diz respeito à morfologia dos órgãos e não ao seu funcionamento. Podemos entender então que sim, se percebe algo anatomicamente diferente, e que para a criança isso está em um registro que ainda antecede uma significação que traga uma hierarquia ou mesmo uma diferenciação de gênero.
Essas duas mensagens deverão ser traduzidas, processadas pela criança com a ajuda do ambiente próximo. De alguma forma, o que se encontra neste ambiente é a hipervalorização da presença/ausência de pênis. Nesse sentido, o complexo de Édipo não é uma situação, mas um mito (p. 286). Configura-se, juntamente com a associação da ideia de castração como um esquema narrativo.
“Esses romances, esses roteiros variáveis entre os indivíduos, seriam, pois, da ordem de esquemas narrativos culturalmente transmitidos, e não, como gostaria a teoria clássica, da ordem das fantasias filogenéticas, pretensamente ‘originárias’.” (LAPLANCHE, 2000-2006, p. 286)
Se tudo isso acontece em relação, na intersubjetividade, é também o adulto e/ou o ambiente que cerca a criança que fornecerá material, ou códigos, para isso que ambos os autores colocam enquanto tradução necessária. Esses códigos tradutivos serão fornecidos pelo ambiente e estarão em consonância, portanto, com aquilo que o ambiente possui enquanto referência. O que Laplanche nos conta é que, no decifrar dessas mensagens, inserida em um ambiente, a criança encontraria uma hipervalorização da presença ou ausência do pênis.
Aqui temos a passagem do autoerotismo – tradução primeira, encabeçada pela criança em seu corpo ainda parcializado – para um novo momento, de entrada na cultura e de significação da sexualidade infantil, perverso e polimorfa, pelo que a cultura tem a oferecer.
De certa maneira, vamos entendendo a constituição psíquica atrelada a essa necessidade de se organizar na ideia de um Eu. Quando nos referimos ao autoerotismo, nos referimos a um corpo que ainda não se inteirou de si mesmo, nem em si mesmo. O contato com o outro nos bagunça e será o disparador para que possamos nos organizar, nos reconhecer enquanto um. Essa organização narcísica é necessária.
Essa organização envolve, como vimos, dar destino de elaboração à sexualidade infantil, que vai se fazendo presente a partir do contato do outro com o corpo da criança, partindo de necessidades instintuais, biológicas, para algo além. Um corpo implantado de sexualidade é um corpo que precisa de algo além do cuidado básico – precisa de amor. É um corpo marcado, cuja sexualidade se organiza nessa ideia de um Eu desprendido duma relação dual que habita de modo desejante o mundo. Essa relação dual nos constitui, nos coloca – e é importante que isso aconteça – em um lugar único, ideal. Quando isso se perde, a criança vai ao mundo buscar ser. Tudo isso, em uma cultura dividida entre homens e mulheres, envolve se definir enquanto tal. Não se trata mais de ter ou não ter, apenas. Ter ou não ter estará associado a ser homem ou mulher. E não nos decidimos sozinhos nesse aspecto; quem nos cerca, assim como o ambiente como um todo, nos fornecerá essas possibilidades.
Se poder ir ao mundo, perceber o outro enquanto diferente e se organizar em si está atrelado à percepção da diferença sexual e, principalmente, a presença ou ausência de pênis, o cerco vai se fechando. Se apenas isso nos servir para significar a experiência da sexuação e nos definirmos enquanto sujeitos – sujeitos homens e mulheres – o cerco se fecha ainda mais. Ou ainda, essa hipótese, em que esses códigos tradutivos são pensados como universais na medida em que operam em todo sujeito, diriam de uma cultura binária, em que se exclui e pune sujeitos que desviam dessa norma.
Se a psicanálise se mantém organizada em torno desse paradigma da diferença sexual como único organizador da sexualidade infantil, determinante de um sujeito, e balizador da própria teoria, entendo que caminhamos mal. Ao final de seu texto, Ana também nos convida a uma abertura.
“se nos desligarmos do Freud biológico, recuperamos o Freud da sexualidade perverso-polimorfa: se nos desligássemos do conceito de sexualidade como produto natural do corpo orgânico para focalizarmos o corpo erógeno, produto da constituição do sujeito desejante, poderíamos encontrar outras saídas, no meu entender, mais interessantes” (SIGAL, 2009, p. 44).
Esse corpo erógeno vai além do orgânico. Vai além da associação de um órgão a um gênero. Ele é mais bagunçado, mais atravessado – mais transpassado de desejos, próprios e não próprios. Do que espero e esperam de mim. Do que desejo, desejam e desejaram de mim. É um corpo imantado de sexualidade que não corresponde apenas a funções ou órgãos vitais. É plural. As saídas são plurais.
Máquinas fazedoras de monstros
O que acontece quando a universalização de saídas edípicas está associada à disposição cisgênera e binária de possibilidades – homem com pênis, mulher sem pênis – é que a psicanálise cria uma ideia de sujeito que não abarca verdadeiramente a pluralidade que de fato encontramos na sociedade. O que acontece é que ela se associa a outros dispositivos de poder sustentados pela binariedade racial e de gênero que classificam sujeitos humanos e não humanos. Sujeitos e outros. Se poderia existir a alteridade, a diversidade, o que se coloca é uma alterização violenta e a diferença que separa. É uma organização frágil de certa forma, mas sustentada ao longo dos séculos com violência. É uma organização que produz monstros.
Em 2019, o filósofo e pensador Paul Preciado foi chamado a falar para centenas de psicanalistas nas jornadas da Escola da Causa Freudiana, na França, acerca do tema “a mulher na psicanálise”. Sua fala, não concluída naquele momento, está publicada no livro Eu sou o Monstro que vos fala – relatório para uma academia de psicanalistas, que causou rebuliço na classe. Podemos dizer que Preciado nos traz um alerta, além de um tapa na cara, para a necessidade de olharmos para a metapsicologia a partir do eco que as identidades desviantes produziram e produzem na sociedade. Mas, para bem além disso, podemos pensar em seu texto como um apelo. Escutemos:
“apelo ardentemente a uma transformação da psicanálise à emergência de uma psicanálise mutante, à altura do paradigma em que vivemos. talvez apenas esse processo de transformação, por mais terrível e desmantelador que possa parecer, mereça hoje ser chamado de psicanálise.” (p. 90)
O pensador, um homem trans, vai nos conduzindo ao longo do trabalho na questão de gênero na psicanálise e na cultura ao longo do tempo. Ele vai nos falando da diferença sexual, tão valorizada na psicanálise, como um dispositivo, um regime ao qual estamos todos submetidos e inseridos de maneira a nem sequer nos percebermos nele. Como um peixe que mora dentro do mar, mas não sabe que mora dentro do mar; pelo menos não reconhece a coisa dessa forma, de uma maneira que haveria algo para além do mar.
Preciado fala de um dispositivo de gênero e raça que legitima um certo ordenamento político e econômico que foi sendo disseminado ao longo dos séculos pela colonização dos territórios não europeus. Dispositivo que classifica, discrimina e oprime – mata, a bem da verdade. Enquanto organizador de um sistema, esses dispositivos aos quais inevitavelmente a psicanálise se alinha produzem essa universalidade na qual as existências que estão fora são punidas por isso. Mas esse dispositivo não operou sempre da mesma forma, não teve sempre a mesma cara. Essa disposição de gênero que conhecemos, a epistemologia da diferença sexual da qual a psicanálise faz uso é, segundo o autor, política, histórica e mutante.
É interessante como Preciado vai historicizando o gênero ao longo dos séculos e sua transformação. Até a Idade Média, por exemplo, predominava uma epistemologia monossexual, na qual existia apenas o órgão masculino e o homem, a mulher viria enquanto comparação hierarquicamente inferior, ou invertida anatomicamente. O entendimento do que seriam um homem, uma mulher, ou um sujeito se transformou.
“ao longo do século XVIII e XIX, as novas técnicas médicas e visuais deram origem progressivamente a uma “estética da diferença sexual”, que opôs a anatomia do pênis à vagina, os ovários aos testículos, a produção de esperma e a reprodução uterina, os cromossomos x e y, mas também o trabalho produtivo masculino e a domesticidade feminina” (p. 54).
Tomando esse trecho apenas como referência, sem me alongar na historicização, ficamos com a ideia de um sistema que de fato não foi sempre o mesmo. Uma cultura que se organiza de maneiras diferentes ao longo do tempo. Ou, retomando Ana Sigal e Laplanche, de um ambiente tradutor, que oferta códigos e possibilidades de significação, também mutante.
Quando faz uso do paradigma da diferença sexual, a psicanálise diz de um código tradutor para os restos não significados, e apenas um. Ana, Laplanche e Preciado fazem coro ao situar isso em uma categoria epistêmica que cria determinadas condições e não outras, o que seria possível e o que não seria. Apenas isso. Só não apenas isso na medida em que se universaliza um sujeito e, ao fazê-lo, a psicanálise desumaniza outros. Se alinha a uma linhagem perigosa de exclusão, a um projeto perverso de mundo. É a isso que Preciado nos chama atenção, a uma teoria que dá sentido ao processo de subjetivação de acordo com o regime da diferença sexual, do gênero binário e heterossexual.
Preciado nos implica a pensar uma “despatriarcalização, deseterossuexialização e descolonização da psicanálise – como discurso, narrativa, instituição e prática clínica.” (p. 89). O que fica de fora se não fizermos dessa forma? Se o que dá sentido à sexualidade, se o que significa os restos da sexualidade não representada se apoia nesse binarismo, algo fica de fora. O convite é a bagunçar a psicanálise, a permitir um atravessamento definitivo da teoria por esses sujeitos monstruosos, figuras da noite não representadas, que restam como não ditos ao psiquismo.
Um apelo à pluralidade
Preciado traz a urgência de repensar a maneira como a metapsicologia psicanalítica se organizou ao longo do tempo. Algo da ordem da sobrevivência da psicanálise não só enquanto teoria, mas enquanto clínica, prática em si. Acredito nessa urgência e compartilho do apelo, assim como aposto em caminhos que envolvem sim, abdicar de alguns conceitos na maneira em que estão difundidos, mas não se desfazer de tudo. Aposto em caminhos que subvertem a leitura da metapsicologia e que deslocam o entendimento na própria produção teórica.
Ivy Souza de Carvalho, em sua tese de doutorado O enigma plural do gênero, faz aberturas importantíssimas e, ao meu ver, inspiradoras. A autora parte de ideias laplanchianas, também presentes em Ana Sigal, e propõe uma abertura ainda mais radical da perspectiva do processo de unificação do Eu.
Ao considerar o processo de constituição do Eu, Ivy também invoca a intersubjetividade, a sexualidade que se dá e elabora em relação. Ela traz a ideia de elaboração a partir da sexualidade ligada ou desligada. Pensemos em cadeias significantes, ou em encaminhamentos da excitação por símbolos que signifiquem. Para a autora, seguindo a ideia de Laplanche, a sexualidade desligada seria justamente a presença do outro em nós. Há de se ligar, traduzir o que resta de modo que o sujeito se apropria do que ficou solto em uma narrativa que faça sentido para ele.
Se nos ligarmos às ideias trazidas mais acima, estamos falando dos esquemas narrativos de Laplanche, dos códigos tradutivos de Ana Sigal. De que maneira damos sentido ao que resta em nós, deixado pelo outro, restos que, relembra Ivy, estão inscritos no corpo. Sua tese traz o autoerotismo como primeiro momento de tradução, mesmo que fragmentada, se pensarmos em um corpo que ainda não se unificou narcisicamente. E aqui está a grande abertura de Ivy, a aposta nesse momento do autoerotismo. Mas não só; Ivy fala de metapsicologia resgatando as ideias laplanchianas das mensagens enigmáticas e propõe aberturas na medida em que faz uma inovadora associação de um desenvolvimento de seu argumento partindo de experiências trans e não binárias.
Ivy está se perguntando e nos oferecendo um caminho para trabalharmos com o enigma de gênero, e o faz considerando experiência e corpos não cisgêneros no contexto do digital como também uma nova possibilidade de tradução. Isso é potente na medida em que ela faz teoria trazendo para a base de sua tese essas figuras. Podemos dizer que de uma maneira a dar lugar, dar espaço e possibilidade de representação ao que tantas vezes ficou irrepresentável.
Ao teorizar sobre essas experiências não cisgêneras com um olhar despatologizante, Ivy contextualiza a questão da diferença sexual na psicanálise:
“No caso da organização corporal cisgênera, o genital vem exercer uma função que segue na mesma linha do narcisismo, como se uma parte representasse o todo corporal. Narcisicamente falando, o Eu não é o todo do sujeito (…) mas ele é uma parte do sujeito que aparece como se fosse a representação do todo. O genital seria o lado corporal dessa função narcísica, na medida em que opera uma fantasia de que é essa parte que garante a unificação do sujeito, como se apenas fosse possível ligar o desligamento próprio da sexualidade por este roteiro.” (SOUZA CARVALHO, 2023, p. 167).
Roteiro, esquema narrativo, apenas uma possibilidade oferecida pela cultura, entre tantas. Ivy nos convida a outras possibilidades, e seu resgate do autoerotismo se costura às experiências de corpos dissidentes, ao falar de uma tradução corporal não binária, algo de uma espontaneidade do sujeito e que preservaria a pluralidade das pulsões parciais. Em suas palavras:
“(…) as traduções corporais não binárias, que preservam a pluralidade das pulsões parciais, teriam também relação com a espontaneidade própria das traduções autoeróticas, uma vez que essas são tecidas na singularidade autônoma do sujeito” (p. 170).
Ivy propõe uma espécie de resgate do autoerotismo, da pluralidade da sexualidade infantil, perverso-polimorfa, como inspiração a pensar a construção de mitos-símbolos também mais plurais. A ideia de um recontorno possível do corpo pulsional, do corpo erógeno a partir de encontros muitas vezes mais tardios nas experiências trans. Proponho, a partir de Ivy, um resgate da potência da ideia de sexualidade perverso-polimorfa de Freud pela psicanálise, descentrando assim do pênis masculino como único organizador narcísico do sujeito e da própria psicanálise.
Não advogo aqui, assim como entendo que Ivy também não o fez, pela desimportância dessa unificação narcísica no destino neurótico. Deste contorno que cabe sim ao Eu, uma pele que possibilite alguma filtragem do dentro e do fora. O autoerótico pode, nesse sentido, vir mesmo mais como inspiração do que como repetição de um outro invasivo, impossibilitando traduções. Ivy traz a ideia de traduções plurais e encabeçadas pelo sujeito de maneira autoral.
Conclusão
A questão, a meu ver, ganha mais se parar de girar em torno de se há em Freud possibilidades para além do Édipo tradicional, ou mesmo se falo equivale ou não ao pênis. Freud escreveu em um determinado tempo, e escreveu sobre este determinado tempo. Freud escreveu a partir das referências e dos códigos culturais de sua época, de Viena, e da Europa. A questão poderia, então, facilmente deslizar para nós, hoje. Pensamos nós em possibilidades para além do normativo? De que maneira isso atravessa nossa escuta? De que maneira a metapsicologia que nos sustenta, nos termos em que se faz, contribui para produzir realidades, e que realidades nos interessaria construir. A questão não é com Freud, mas conosco.
Na esteira do que nos conta Ivy, a partir da provocação de Preciado, com Laplanche e Ana Sigal na malinha de mão, como pensar em saídas para a teoria que não só incluam, mas proponham novas soluções para o enigma do gênero, visando a desuniversalização da solução fálica encontrada pela psicanálise em costura com a nossa cultura ocidental. E aí pensemos em “mais uma” opção, um “e”, e não a inversão do centro de um pensamento universalizador. De maneira que convivam diferentes e plurais possibilidades.
Escutemos o apelo de Preciado, e peguemos carona com Ivy para revisitar momentos da teoria que possam nos conduzir a outros lugares, mesmo que envolvam reescrever e reinscrever a teoria. Que possamos nos bagunçar e inspirar pelo outro, pelo que vem de fora, pelo que é estrangeiro.
Que possamos escutar a clínica, escutar as periferias, o que vem da margem. Que possamos nos deixar atravessar pelas experiências dos corpos dissidentes, dos corpos trans, dos corpos pretos. Que possamos nos abrir.
E ainda, que a aposta de que outros códigos tradutivos possam ser buscados e aplicados. Uma aposta que aponta para algo do pré genital no sentido metapsicológico, no sentido da organização da metapsicologia, uma aposta em um Freud do perverso polimorfo, da abertura e da despatologização. O Freud da sexualidade infantil.
Que possamos reconhecer o que ficou datado, o que ficou imóvel ao longo das últimas décadas, que não pode se contaminar, se bagunçar. Deixemos entrar o que está de fora, de maneira a escutar onde falhamos.
(…) sou chorona, sou canceriana com ascendente em aquário (…) sou determinada, sou corajosa, mas sou muito medrosa. sou complexa, sou contraditória, trabalho com o erro, com a falha, com o fracasso. eu sou o fracasso, eu fracassei, sou o fracasso de tudo aquilo que esperavam que eu fosse. não sou homem, nem sou mulher, sou travesti. e assim sou eu, por isso estou aqui.”
(Lina Pereira, em apresentação no BBB22)
Assim Lina se apresentou em sua participação no BBB 22, reality show da TV Globo. Assim como ela, muitas e muitos de nós representamos o fracasso do que se esperava de nós nesse cis-tema sexo/gênero. Que bom. Que bom poder falhar, não? Que bom poder não ter, não ser. Que bom desistir dessa busca. Isso tudo, de forma que todo um novo campo de possibilidades se abra no sentido dos “seres” e “teres”. Tomara que o mesmo possa acontecer com a psicanálise que, assim como nós, fracassou.
Meu apelo é que possamos, enquanto psicanalistas, reconhecer o fracasso não como impossibilidade ou desorganização, mas como potência de um novo. Uma crise que gera criação e possibilidade de um devir. No modelo do que se distancia do ideal perdido e pode seguir um ideal construído.
bibliografia:
LINIKER E OS CARAMELOWS. (2016) Zero. Álbum Remonta. Disponível em: https://www.letras.mus.br/liniker-e-os-caramelows/zero/. acesso em: 13/11/2024
FREUD, S. (1923). A organização genital infantil. In Sigmund Freud Obras completas. vol. 16. São Paulo, Companhia das Letras, 2020;
SIGAL, A. M. (2009) A organização genital infantil. In: Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2009;
LAPLANCHE, J. (2000-2006) Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In Sexual – a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre, Dublinense, 2015;
PRECIADO, P. B. (2022). Eu sou o monstro que vos fala – Relatório para uma academia de psicanalistas. Rio de Janeiro, Zahar, 2022;
SOUZA CARVALHO, I. (2023) O enigma plural do gênero. 229f. Tese (Doutorado- Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2023; disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-08122023-155222/en.php
Apresentação de Lina Pereira no BBB 22, TV Globo (2022). disponível em: https://www.facebook.com/HugoGloss/videos/quem-%C3%A9-linn-da-quebrada-com-a-palav ra-lina-pereira-ao-vivo-em-cores-e-em-todas-a/302383608615651/ acesso em 15/11/2024.
__________
[1] Originalmente apresentado como monografia de 3o ano do Curso de Psicanálise em 2024.
[2] Psicanalista em formação no Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.