Sobre a queda do céu e nossos paraquedas
por Soraia Bento[1]
São como formigas. Andam para um lado,
viram de repente e continuam para outro.
Olham sempre para o chão e nunca veem o
céu.
Davi Kopenawa, Newsweek, 29 de abril de 1991,
sobre os habitantes de Nova Iorque
A convite do Colégio Santa Cruz, venho conduzindo Rodas de Conversa com pais de alunos, em um evento anual que visa ao encontro das famílias com a escola. A cada ano, um tema é escolhido como disparador para o trabalho. A mim, parece que o tema central circunda possibilidades de se fazer comunidade, sob diversas formas. Conforme o texto de divulgação deste ano, o objetivo é conquistar a potência do encontro, do diálogo e da reflexão coletiva. Alguns paraquedas para evitar o enfraquecimento do vínculo no binômio família-escola. O objetivo é trabalhar as questões que emergem no cotidiano escolar, além de problemáticas que inquietam o campo social.
O evento sempre tem início com uma palestra que trata de grandes questões que, posteriormente, são elaboradas a partir de temas mais específicos, em grupo menores.
Esses grupos são facilitadores para temáticas pensadas a partir de uma excelente curadoria feita pela direção pedagógica e orientadores dos ensinos fundamental e médio.
Nesse ano a palestra de abertura teve como título; “Por que vocês, napëpë, são tantos, mas vivem sempre fechados em suas casas?” Uma conversa sobre tecer redes de cuidado e fazer comunidade. A palestrante, Ehuana Yaira Yanomami, é uma liderança indígena, artista e pesquisadora. É uma das organizadoras do Encontro das Mulheres Yanomami e pesquisadora pela Universidade Federal de Minas Gerais no Projeto Redes de Cuidado. É uma militante na defesa da Amazônia e na luta contra o garimpo ilegal[2]. A antropóloga Ana Maria Machado foi uma excelente intérprete, considerando o imenso desafio que é encontrar termos traduzíveis para duas cosmologias tão distintas.
Um palco, em um imenso anfiteatro lotado, teve a psicanalista Ilana Katz como anfitriã para esse diálogo. No início, Katz nos conta que teve a grata oportunidade de receber as duas em sua casa por uma semana. Foram horas intermináveis de conversa ao pé da mesa, tecendo, com fios diferentes, as tramas que compõem cada cultura. Que oportunidade valiosa!
A chegada da Ehuana ao espaço da escola demonstrava, em um tom grave, a sua expressão facial de estranhamento; só ao final ficamos sabendo que ela nunca havia falado para um público grande. Quando o auditório lotado se levantou para aplaudi-la durante minutos, ela nos gratificou com um sorriso tão lindo e aberto que deu a impressão de saber o que nos tocou profundamente.
Durante o evento não fiz qualquer registro, portanto, esse relato é filtrado pelo impacto afetivo e cognitivo que experimentei.
Ehuana começou contando sobre sua experiência de perambular pela cidade, numa espécie de “antropologia reversa” e nos confrontou com o seu olhar apurado sobre as atrocidades que nossa desigualdade evidencia na metrópole. O “outro” denuncia o que já não vemos com a sensibilidade necessária. Problematizou o conceito de direitos humanos, de dificílima tradução, ao assistir aos incontáveis humanos espalhados pelas ruas, sem casa, sem calor, sem comida, pedindo ajuda. Falou da sua imensa tristeza ao assistir à desigualdade de condições materiais que qualifica humanos com direitos e humanos sem direito algum. Se não há direitos iguais, então, o que temos são privilégios muito bem direcionados para um tipo específico de humanos. Há vidas que valem e outras que não têm valor. Enfatizou a importância que sua comunidade dá ao cuidado com quem se encontra em condição fragilizada. Sentem-se tristes ao ver semelhantes desiguais … soa naif? Não deveria, não é mesmo?!
A cidade é um território criado para “humanos” e por humanos que anulam outras formas de existir. Antônio Bispo chama isso de cosmofobia. Se alguma natureza resiste ao concreto e asfalto, deve-se inteiramente à sua força de resistência contra a vontade de extermínio.
Mora na grande casa que abriga parentes, entre eles, Davi Kopenawa. Cozinham e cuidam de quem precisa. Consideram bom caçador aquele que caça e não come a própria caça, distribui tudo e depende de um outro bom caçador para fazer o mesmo. Não há competitividade, seu prestígio depende da sua generosidade. Nós, povo da cidade, nos achamos importantes quando temos propriedades, trabalho, carro e outras toneladas de mercadorias que têm seu valor na montagem de uma imagem para nos destacar e não na sua utilidade. Os povos originários sabem-se necessários. Para eles toda forma de vida é valiosa e necessária.
Sofri um plot twist na minha cognição. Lembro do Prof. José Geraldo, na CPI do MST respondendo à Deputada Carolina de Toni. Ele usa a metáfora de Colombo para ilustrar nossa irremediavelmente limitada visão de mundo. No encontro dos indígenas com os colonizadores, os primeiros não viram as caravelas porque não havia cognição para representar uma imagem incompatível com sua cultura. Não havia código linguístico para decodificar o sentido do que assistiam. “A gente só vê o que tem cognição para ver: o que a senhora vê, não é o que existe, mas, sim, o que a senhora recorta daquela visão. A realidade é recortada por um processo de historicização. Não posso discutir visão de mundo, eu vejo outra coisa que a senhora!”. Essa cena voltou nitidamente à minha lembrança enquanto ouvia Ehuana nos ver. O que ela viu que não pôde desver e o que não viu porque não sabia ver? Ao mesmo tempo, penso que quem luta contra o garimpo ilegal já viu todo tipo de atrocidades.
Outro ponto alto do evento foi quando Debora Vaz, a diretora pedagógica, lembrou da máxima que usamos equivocadamente à exaustão: uma criança precisa de uma aldeia para se desenvolver… sim, mas Ehuana ensina que também é necessário criar uma criança para a aldeia, via de mão dupla. Entendemos essa versão da forma mais egoísta que existe, nossa “majestade, o bebê” realmente precisa de tanto, tanto… para seguir majestade. Nem sempre nos atemos ao ser coletivo de forma consistente. Como fazer para que esse sujeito nascente entenda que é uma poeira cósmica sem o seu entorno humano e não humano?
As crianças na aldeia indígena crescem juntas, aprendendo e ensinando na troca de experiências, não há valoração, há diversidade de potências. Mostrou-nos imagens de brincadeiras e exploração de território, nas quais pequenos e grandes trocam suas vivacidades, sem hierarquia.
Corta; vou ao encontro dos pais que escolheram minha temática para dialogar. Tracei um roteiro para falar sobre ansiedade e depressão na infância e adolescência. O título que dei para a roda de conversa, “O que será que me dá”, extraí de um verso de Chico Buarque.
Entrando na escola que mais parece um clube arborizado e espaçoso, atravessei campos de futebol e bonitas construções, quando me deparei com um grafite onde se lia: “O Eu é o Outro”. Que bela lembrança para casar com a fala da indígena Yanomami! Não sei o que Eu e Outro significam para seu povo, mas entendi o valor do encontro com a alteridade, com o coletivo, com os sonhos e com outros mundos.
Certa vez, fui questionado por um pesquisador de Cabo Verde: “Como podemos contracolonizar falando a língua do inimigo?”. E respondi: “Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer des-envolvimento, nós vamos dizer que desconecta… que a palavra boa é envolvimento.
Antônio Bispo dos Santos
“O que será que me dá”… diz sobre um arrebatamento, alguma coisa que a gente não controla, que nos atravessa intensamente. É alguma coisa que não tem remédio, nem nunca terá, que não tem limite; que não tem cansaço; que não tem descanso. Como não se sentir desiludido em um mundo à beira do colapso?! A poesia fala dessas sensações como algo inerente e inevitável, mas sabemos que, para além da dor atávica do viver, há experiências exacerbadas que nos defrontam com quadros psicopatológicos.
Penso no olhar de outros modos de viver sobre nosso corre do dia a dia na grande metrópole. Criamos um estilo de vida ansiogênico e depressor.
Vamos destacar pontos sobre os efeitos, nas novas gerações, do estabelecimento de um tipo de comunicação que pode prescindir da presença do outro.
O século XXI traz, como característica nova, o uso em larga escala do universo virtual, sitiando as relações humanas. Há quem pense que está em curso uma espécie de mutação antropológica, a partir dos efeitos das reações dopaminérgicas aos estímulos eletrônicos, no nosso cérebro. Mudamos o nosso modo de ser e estar no mundo, permanentemente. A tecnologia sempre despertou fascínio e pavor. Nos fascinamos com a inesgotável capacidade humana de contornar obstáculos e promover avanços; nos apavoramos com o risco da obsolescência das nossas capacidades, também com a imprevisibilidade das mudanças inevitáveis; basta pensar nas discussões sobre a IA.
Os nascidos entre 1995 e 2012 foram pensados como uma geração iGen, híbrido entre geração internet e geração do Eu. Esse modo de relação, através da tela, tem como consequência um severo comprometimento na empatia e uma atrofia da sensibilidade. Na contramão do bom-senso, Elon Musk, semanas atrás declarou: “ a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”… Considera-se alguém que pode nos salvar da empatia, porque ela levaria ao suicídio civilizacional. Para ele, a empatia inviabiliza o coletivo!
Aprendemos a nos relacionar na experiência com as trocas humanas, frente a frente, lidando com a reação imediata do outro, expressando uma linguagem corporal, decodificando a do outro. Exige negociação, temporalidade, conservação.
Recentes estudos registram uma piora significativa dos indicadores de depressão, ansiedade, transtornos alimentares e automutilação entre crianças e adolescentes, em vários países. Esses números são tão alarmantes que quase perdem seu significado quando os ouvimos. Exemplo, cerca de 1.000 crianças e adolescentes, entre 10 e 19 anos, cometem suicídio no Brasil a cada ano. Nos últimos anos, o número de meninas entre 12 e 14 anos com algum tipo de diagnóstico de transtorno alimentar aumentou mais de 200 por cento.
Por mais absurdos e chocantes que sejam esses números, às vezes é difícil ver uma reação proporcional no enfrentamento do problema. A proibição dos celulares no período escolar e o adiamento da introdução de celular na vida das crianças até 14 anos, são alguns exemplos recentes de medidas necessárias. Achei a série Adolescência extraordinária, porque conseguiu mobilizar angústias e busca por ajuda no manejo das intercorrências na comunicação, que não tinha visto nenhum estudo sério conseguir produzir.
Claro que o sofrimento mental é multifatorial: existem causas biológicas, de predisposição genética, familiares e sociais associadas, e seria redutor atribuirmos ao uso das redes e celulares com câmeras a responsabilidade por tudo, mas sim, não se pode negar sua importância. Também não se trata de pensar nostalgicamente no mundo analógico porque esse é um caminho sem volta.
Estudos mostram que crianças têm aprendido mais palavras no mundo digital do que com seus familiares. As palavras são códigos de comunicação; nesse sentido, o significado das coisas e das palavras provém da afetividade e da confiança. A palavra dita por esses adultos que são responsáveis pelo cuidado da criança tem voz, tem corpo presente e não pode ser substituída por um universo digital descorporificado. É sinistro, se pensarmos com atenção! Protegemos as crianças de saírem às ruas sozinhas, mas deixamos as crianças nos becos escuros da Odiolândia (termo cunhado por Gisele Beiguelman, artista visual), que foi o que se tornou o território de conexões no campo virtual.
A constituição do Eu se dá na presença de um outro que fale conosco através de gestos e palavras, ou seja, através da linguagem. A voz do adulto responsável pelo cuidado com o bebê evoca o seu potencial de comunicação. Esse processo insere esse sujeito nascente em uma ordem simbólica. A palavra representa o que está ausente, antes da nossa existência já há um código de comunicação compartilhado que nos precede. Ele é regido por uma gramática própria que não começa e nem termina no intervalo da existência individual. Então, esse adulto que cuida, oferece uma ponte entre o bebê e o seu entorno. A mãe desde sempre precisa falar com seu bebê, mesmo que ele não conheça o sentido das palavras, porque isso é um convite a integrar a comunidade. O sentido das coisas depende de relação de confiança e afetividade.
Hoje lidamos todos, crianças, jovens e adultos, com muitos medos: a violência cotidiana e das guerras, mudanças climáticas avassaladoras, efeitos da pandemia que deixaram sequelas (perdas cognitivas e motoras nas crianças e idosos). Essas incertezas assombram as certezas necessárias para uma sustentação egóica.
O Eu é um “canteiro de ilusões” no dizer de Maria Rita Kehl, constitui-se a partir de sonhos e projeções alheias. Sofre abalos sísmicos nas diversas etapas pelas quais vai respondendo a uma progressiva exigência do seu meio.
A sobrecarga sobre nossas crianças e adolescentes, comumente, gera sentimento de impotência que pode conduzir a uma “fuga” para a depressão. Enquanto a depressão denuncia o que falhou na comunicação intersubjetiva, a ansiedade denuncia um mundo imprevisível demais. A depressão é a expressão mais radical do desamparo e da solidão, embora o sofrimento e a angústia sejam condição da vida. A ansiedade é expressão da saturação do sistema perceptivo, bombardeado por tantas demandas.
Em suma, o que daria um apaziguamento para tanta incerteza seria a certeza da permanência do sentimento de um Eu, constante, firme e forte. Aqui chegamos ao ponto mais complexo do que acontece na adolescência. Vou emprestar o conceito “complexo da lagosta”, de Françoise Dolto, que compara o drama adolescente à perda, de tempos em tempos, do exoesqueleto da lagosta. Esse estado de nudismo, em carne viva enquanto há a construção de um novo exoesqueleto que a comporte, pode equivaler ao estado de angústia adolescente. Entre o exoesqueleto da infância, que já não lhes cabe, e o do adulto, estão eles expostos e frágeis. Momento de novos amores, da definição de uma identidade sexual, que pode ou não estar em concordância o sexo biológico, da diferenciação com os pais…
A vontade de viver só se transmite com a verdade de quem quer viver, não com retórica. O exemplo é o engajamento em projetos que gerem paixão e comprometimento. Mais um paraquedas. A palavra comprometimento assusta toda uma geração que está sendo treinada para ter relações líquidas, fluídas e canceláveis. Por isso pais e escolas têm que fazer disso uma pauta diária. Precisamos nos conectar com o conceito de coletividade que exige a soma, saber-nos um elo em uma corrente.
Os casos de suicídio noticiados nos últimos tempos levantam o véu que encobre a solidão desses jovens. As mortes provocadas por desafios da web (em menos de 2 anos, 20 crianças e adolescentes morreram pelo desafio do apagão)….Depressões, automutilações, síndrome do pânico, transtornos alimentares são algumas das expressões desse mal-estar.
Nós, atualmente, somos considerados os “sujeito do desempenho”, nas palavras do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han: nos pensamos sujeitos livres, sem a pressão da obediência disciplinadora que caracterizou os tempos atrás. Porém, não nos damos conta do potencial avassalador que comporta o atualíssimo imperativo categórico: você pode, you can! Quem suporta essa convocação à onipotência enganosa, sem precisar entorpecer-se por drogas, redes sociais ou consumo desenfreado, em um estado de passividade que inibe o pensamento crítico?! Ao dar-se conta de não ser tão poderoso como se fez crer, advém “O que será que me dá…”
Onde estão os paraquedas? Como acioná-los? O que fazer para recuperarmos o desejo de viver nesse mundo? Ou como podemos construir juntos uma ideia de futuro que não remeta a um lugar desesperador e extremo? Imagino um caminho de elaboração que parta da inevitabilidade da frustração e da angústia, mas também do prazer no encontro e na troca. Cada um tem na própria história um repertório de experiências que acompanha os momentos de grande turbulência. Quanto mais tiverem sido assistidos nas suas angústias, melhores as chances de saber buscar boas saídas. A percepção da transitoriedade da vida deve ser o chamamento para realizações responsáveis.
A insurgência pode ser uma delas, se germinar na vertente idealista (militâncias políticas) ou pode ser destrutiva, se germinar nas formas de vandalismo, delinquência. Quando o sonho de um futuro é retirado enquanto possibilidade, só resta a versão destrutiva como saída.
Uma questão fundamental para os nossos dias seria: Como manter acesa a chama do idealismo nesses tempos de distopia (opressão, desespero ou privação)? Não é fácil! Não ser abalado pelo que está acontecendo no cenário social é claramente uma fuga infrutífera, sucumbir à angústia dilacerante é mortífero. Então, incentivar a participação dos filhos no debate político e não represar seus sonhos, ainda que distantes do que os pais considerem real, é importante para manter acesa a “chama da vida” e do desejo. Vide a manifestação que reuniu mais de 300 crianças no Shopping Higienópolis, dias atrás, contra atitudes racistas. Pode ser um ato político a ressuscitar sujeitos apáticos. Foi lindo de ver.
Para-excitação, para-raio, para-queda. O prefixo “para” compõe com proteção, resguardo e amparo. Vamos insistir nessa composição.
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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora e supervisora no Curso de Psicanálise.
[2] Para saber mais, vale a leitura da entrevista concedida por Ehuana Yanomami à jornalista Eliane Brum para o portal Sumaúma, jornalismo do centro do mundo, em 15 de maio de 2025. Disponível em: https://sumauma.com/o-mundo-de-voces-brancos-me-deixa-muito-triste/