Instituto Sedes Sapientiae

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Coleção Zines Clínicas de Borda

por Ana Patitucci[1]

 

A coleção de Zines Clínicas de Borda, publicada pela n-1 edições, foi lançada em março deste ano, trazendo-nos um retrato da psicanálise que vem sendo praticada no país pelas clínicas públicas. De alguns anos para cá, se ampliou o movimento de coletivos clínicos que oferecem atendimento a populações periféricas e comunidades vulneráveis, com pouco ou nenhum acesso a cuidados psíquicos, excluídas dos consultórios particulares. A coleção, que está em aberto, conta agora com 22 Zines que correspondem, por sua vez, a 22 clínicas presentes em várias cidades e Estados do Brasil, como Psicanálise na Rua (Cuiabá), Ocupação Psicanalítica (Santo Antonio de Jesus/BA, Vitória, Belo Horizonte e Rio de Janeiro), Falatrans (Juiz de Fora), Clínica do Cuidado Belo Monte (Altamira), Margens Clínicas (São Paulo), Projeto Gradiva (Porto Alegre), dentre outras.

A meu ver, trata-se de uma iniciativa importante, na medida em que os Zines, pequenas revistas feitas pelos próprios coletivos, nos apresentam os registros da clínica presente nas ruas e nas comunidades brasileiras. E, por meio deles, emerge a riqueza de uma psicanálise plural e inclusiva, cuja extensão é tecida pela rede de clínicas públicas, produtoras de efeitos na prática clínica, na teoria e na formação do analista, como Freud previu.

Não podemos mais esquecer que a função social da psicanálise está inscrita desde sua fundação. Elizabeth Ann Danto, em seu livro As clínicas públicas de Freud, resgatou a história dessa inscrição, ao narrar como Freud marcou a mudança de perspectiva da psicanálise em seu discurso proferido no 5º Congresso Psicanalítico Internacional, poucos meses antes do final da Primeira Guerra Mundial, e publicado em 1919, com o título de Caminhos da terapia psicanalítica. Freud chamou a atenção para o direito ao atendimento clínico gratuito de uma população adoecida que, desprovida de condições financeiras e materiais, e agravadas pela guerra, não tinham acesso às clínicas privadas dos analistas que atuavam na época. “Ele explicou”, diz Danto, “por que, em um momento de luta entre a necessidade humana e as forças socioeconômicas dominantes, os psicanalistas não podiam mais insistir em considerar a neurose do individuo como único locus de intervenção.”[2] Era preciso, portanto, ampliar o alcance do tratamento psíquico, tornando a psicanálise acessível e solidária.

Foi assim que as primeiras gerações de analistas, inspirados por Freud e sob o impacto da crise humanitária gerada pela Primeira Guerra, fundaram, a partir de 1920, dezenas de clínicas públicas em várias cidades do continente europeu, fomentando a produção psicanalítica em todos os seus âmbitos. Foram anos de trabalho fecundo, que acabou nos escombros da Segunda Guerra Mundial.

Se as primeiras clínicas públicas não resistiram à violência da Segunda Grande Guerra, a vocação social da psicanálise, no entanto, não se perdeu. Mas passou para a margem da prática e da formação psicanalítica, quando não invisibilizada ou apagada por um rumo mais elitista, tanto na clínica quanto nas formações instituídas.

A elitização da psicanálise teve como um de seus efeitos ser definida a partir dos enquadres realizados nos consultórios particulares. O atendimento feito de forma diferente desse enquadre não era, então, considerado psicanálise. Nos anos 90, trabalhei em alguns equipamentos de saúde mental e ouvi, por diversas vezes, que ali não se fazia psicanálise, que os atendimentos que nós, psicanalistas, fazíamos não era psicanálise, pois a população atendida não sabia falar sobre seu sofrimento, não associava. O equívoco dessa concepção se revelava no trabalho de analistas que continuavam a realizar e sustentar os atendimentos populares, dentro dos equipamentos de saúde mental, nas ruas ou onde quer que eles estivessem presentes, escutando o sofrimento psíquico. E o florescimento atual das clínicas populares brasileiras demonstra, mais uma vez, o potencial da psicanálise na perspectiva social defendida por Freud, o qual considerava que a produção nesse campo seria importante para a própria sobrevivência da psicanálise.

Como sabemos, a psicanálise é conectada ao meio sociopolítico e cultural no qual está inserida, e na contracapa dos Zines lemos a seguinte apresentação: “A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e da sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural.” Então, inquietos com o desamparo de uma população desassistida, que sofreu e sofre os efeitos do racismo, da desigualdade social, dos fluxos migratórios, violência de gêneros, a grave crise política e sanitária que vivemos nos últimos anos, analistas se uniram para criar os diversos coletivos que compõem as Clínicas de Borda. Esses analistas, de diferentes abordagens teóricas, se fizeram presentes nos diversos territórios como praças, ocupações, periferias, quilombos. E em contato com o território escolhido, criaram dispositivos clínicos próprios à demanda que emergiu através da atenção e da escuta das questões vividas pelas populações acolhidas. Assim, os diferentes dispositivos que formam os diferentes enquadres tornaram possível a continência de uma transferência em curso e, por meio desta, encontrar as formas possíveis de cuidado.

Esse contexto de heterogeneidade aponta para o potencial da prática pública da psicanálise, como vemos na mesma contracapa: “Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação.” Esse vigor aparece nos registros das diferentes clínicas, os quais relatam as questões complexas que movem e envolvem cada uma delas e como as discussões teóricas e técnicas que acontecem em grupos de supervisão, de discussão clínica e grupos de estudos sustentam o trabalho dos analistas implicados no trabalho.

As Clínicas de Borda enfrentam, portanto, discussões que podem resultar em novos aportes teórico-clínicos e são produtoras de formação e pesquisa. Nesse sentido elas revelam a força e a riqueza desse trabalho para se pensar a psicanálise que praticamos hoje.

Além dos zines, as Clínicas de borda originaram mais um fruto: em novembro ocorrerá o 1º Encontro Nacional das Clínicas de Borda. Serão dois dias que reunirão os coletivos para discutir os seguintes temas: a dimensão transferencial e a questão do pagamento. Esse encontro é parte da programação do 2º Colóquio Internacional de Decolonização e Psicanálise, que acontecerá entre 13 e 15 de novembro, na UFMG, Belo Horizonte.

 

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e representante do Departamento de Psicanáiise no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

[2] Danto, Elizabeth A. As clínicas publicas de Freud, p. XX.

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